" Eu vi um poço fundo e escuro; em sua borda havia um balde amarrado em uma corda. Eu vi o balde sendo baixado para dentro do poço e, quando ele foi novamente puxado para cima e para fora da escuridão, ele estava transbordante de água clara e pura. Eu ouvi as palavras: Bem dentro de cada alma existe a pureza do Espírito. Procure sem pressa até encontrá-la e, então traga-a à tona." Eileen Caddy
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terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Escuta, Zé Ninguém! - Wilhelm Reich


Escuta, Zé Ninguém!



Chamam-te “Zé Ninguém!” “Homem Comum” e, ao que dizem, começou a tua era, a “Era do Homem Comum”. Mas não és tu que o dizes, Zé Ninguém, são eles, os vice-presidentes das grandes nações, os importantes dirigentes do proletariado, os filhos da burguesia arrependidos, os homens de Estado e os filósofos. Dão-te o futuro, mas não te perguntam pelo passado.



Tu és herdeiro de um passado terrível. A tua herança queima-te as mãos, e sou eu que to digo. A verdade é que todo o médico, sapateiro, mecânico ou educador que queira trabalhar e ganhar o seu pão deve conhecer as suas limitações. Há algumas décadas, tu, Zé Ninguém, começaste a penetrar no governo da Terra. O futuro da raça humana depende, à partir de agora, da maneira como pensas e ages. Porém, nem os teus mestres nem os teus senhores te dizem como realmente pensas e és, ninguém ousa dirigir-te a única critica que te podia tornar apto a ser inabalável senhor dos teus destinos. És “livre” apenas num sentido: livre da educação que te permitiria conduzires a tua vida como te aprouvesse, acima da autocrítica.



Nunca te ouvi queixar: “Vocês promovem-me a futuro senhor de mim próprio e do meu mundo, mas não me dizem como fazê-lo e não me apontam erros no que penso e faço”.



Deixas que os homens no poder o assumam em teu nome. Mas tu mesmo nada dizes. Conferes aos homens que detêm o poder, quando não o conferes a importantes mal intencionados, mais poder ainda para te representarem. E só demasiado tarde reconheces que te enganaram uma vez mais.



Mas eu entendo-te. Vezes sem conta te vi nu, psíquica e fisicamente nu, sem máscara, sem opção, sem voto, sem aquilo que fiz de ti “membro do povo”. Nu como um recém-nascido ou um general em cuecas. Ouvi então os teus prantos e lamúrias, ouvi-te os apelos e esperanças, os teus amores e desditas. Conheço-te e entendo-te. E vou dizer-te quem és, Zé Ninguém, porque acredito na grandeza do teu futuro, que sem dúvida te pertencerá. Por isso mesmo, antes de tudo o mais, olha para ti. Vê-te como realmente és. Ouve o que nenhum dos teus chefes ou representantes se atreve a dizer-te:



És o “homem médio”, o “homem comum”. Repara bem no significado destas palavras: “médio” e “comum”.



Não fujas. Tem ânimo e contempla-te. “Que direito tem este tipo de dizer-me o que quer que seja?” Leio esta pergunta nos teus olhos-amedrontados. Ouço-a na sua impertinência, Zé Ninguém. Tens medo de olhar para ti próprio, tens medo da crítica, tal como tens medo do poder que te prometem e que não saberias usar. Nem te atreves a pensar que poderias ser diferente: livre em vez de deprimido, direto em vez de cauteloso, amando às claras e não mais como um ladrão na noite. Tu mesmo te desprezas, Zé Ninguém, Dizes: “Quem sou eu para ter opinião própria, para decidir da minha própria vida e ter o mundo por meu?” E tens razão: Quem és tu para reclamar direitos sobre a tua vida? Deixa-me dizer-te.



Diferes dos grandes homens que verdadeiramente o são apenas num ponto: todo o grande homem foi outrora um Zé Ninguém que desenvolveu apenas uma outra qualidade: a de reconhecer as áreas em que havia limitações e estreiteza no seu modo de pensar e agir. Através de qualquer tarefa que o apaixonasse, aprendeu a sentir cada vez melhor aquilo em que a sua pequenez e mediocridade ameaçavam a sua felicidade. O grande homem é, pois, aquele que reconhece quando e em que é pequeno. O homem pequeno é aquele que não reconhece a sua pequenez e teme reconhecê-la; que procura mascarar a sua tacanhez e estreiteza de vistas com ilusões de força e grandeza, força e grandeza alheias. Que se orgulha dos seus grandes generais, mas não de si próprio. Que admira as idéias que não teve, mas nunca as que teve. Que acredita mais arraigadamente nas coisas que menos entende, e que não acredita no que quer que lhe pareça fácil de assimilar.



Comecemos pelo Zé Ninguém que habita em mim: Durante vinte e cinco anos tomei a defesa, em palavras e por escrito, do direito do homem comum à felicidade neste mundo; acusei-te pois da incapacidade de agarrar o que te pertence, de preservar o que conquistaste nas sangrentas barricadas de Paris e Viena, na luta pela Independência americana ou na revolução russa. Paris foi dar a Pétain e Laval, Viena a Hitler, a tua Rússia a Stalin, e a tua América bem poderia conduzir a um regime KKK – Ku-Klux-Klan. Sabes melhor lutar pela tua liberdade que preservá-la para ti e para os outros. Isto eu sempre soube. O que não entendia, porém, era porque de cada vez que tentavas penosamente arrastar-te para fora de um lameiro acabavas por cair noutra ainda pior. Depois, pouco a pouco, às apalpadelas e olhando prudentemente em torno, entendi o que te escraviza: ÉS TU O TEU PRÓPRIO NEGREIRO. A verdade diz que mais ninguém senão tu é culpado da tua escravatura. Mais ninguém, sou eu que te digo!



Esta é nova, hein? Os teus libertadores garantem-te que os teus opressores se chamam Guilherme, Nicolau, papa Gregório XXVIII, Morgan, Krupp e Ford. E que os teus libertadores se chamam Mussolini, Napoleão, Hitler e Stalin.



Mas eu afirmo: Só tu podes libertar-te.



Esta frase faz-me, porém, vacilar. Intitulo-me paladino da pureza e da verdade, mas agora que se trata de te dizer a verdade, hesito, temendo a tua atitude em relação à verdade. A verdade é um perigo para a vida quando é a ti que diz respeito. A verdade é a salvação mas não há população que não se lance sobre ela para a espoliar, de outro modo não serias o que és nem estarias onde estás.



Intelectualmente, sei que devo dizer a verdade a todo o custo. Mas o Zé Ninguém que se alberga em mim adverte-me: estúpido, expores-te, entregares-te, ao Zé Ninguém. O Zé Ninguém não está interessado em ouvir a verdade acerca de si próprio. Não deseja assumir a grande responsabilidade que lhe cabe, quer queira quer não. Quer permanecer o que é ou, quando muito, tornar-se num desses grandes homens medíocres – ser rico, chefe de um partido, da Associação dos Veteranos de Guerra ou secretário da Sociedade de Promoção da Moral Pública. Mas assumir a responsabilidade do seu trabalho, alimentação, alojamento, transportes, educação, investigação, administração pública, exploração mineira, isso nunca.



E o Zé Ninguém que se aloja dentro de mim acrescenta:



“És agora um grande homem, conhecido na Alemanha, Áustria, Escandinávia, Inglaterra, América, Palestina. Os comunistas atacam-te. Os ‘defensores dos valores culturais’ odeiam-te. Os teus alunos estimam-te. Os doentes que curaste admiram-te. Os que sofrem da peste emocional perseguem-te. Escreveste 12 livros e 150 artigos sobre as misérias da existência, sobre o sofrimento do homem comum. As tuas idéias são ensinadas nas Universidades; outros grandes homens igualmente solitários confirmam o teu prestígio e põem-te entre os maiores intelectos da história da ciência. Fizeste uma das maiores descobertas científicas desde há muitos séculos, a da energia cósmica da vida e suas leis. Tornaste o cancro um fenômeno compreensível. Por tudo isto, andaste de pais em pais por dizeres a verdade. Descansa agora. Goza os frutos do teu êxito, do teu prestígio. Em poucos anos o teu nome será conhecida por todos. O que fizeste já basta. Recolhe-te agora ao repouso, ao estudo da lei funcional da natureza”.



Esta é a conversa do Zé Ninguém dentro de mim e que te teme a ti, Zé Ninguém.



Durante muito tempo sintonizei contigo porque conhecia a tua vida através da minha própria existência e porque queria ajudar-te. Mantive-me perto de ti porque via que te era útil e que aceitavas o meu auxilio com prazer e, não raro, com lágrimas nos olhos. Só aos poucos percebi que o aceitavas, mas que não eras capaz de defendê-lo. Defendi-o e lutei para ti, por ti. Foi então que os teus chefes destruíram o meu trabalho e que tu os seguiste em silêncio. Continuei então em comunhão contigo, tentando achar maneira de ajudar-te sem soçobrar quer como teu dirigente quer como tua vítima. E o Zé Ninguém que reside em mim tentava convencer-te, “salvar-te”, merecer-te o respeito que consagras às “altas matemáticas” por não fazeres a mínima idéia do que sejam. Quanto menos entendes, mais prezas. Conheces Hitler melhor que a Nietzsche, Napoleão melhor que a Peslalozzi. Qualquer monarca significa mais para ti do que Sigmund Freud. E o Zé Ninguém que vive em mim gostaria de ter-te nas mãos pelo processo costumeiro, recorrendo ao rataplã dos chefes. Eu temo-te, porém, quando o meu Zé Ninguém deseja “conduzir-te à liberdade”. É que poderias descobrir a mesma identidade medíocre em ti e em mim, e, assustado, matares-te na minha pessoa. Foi por isso que deixei de ser escravo da tua liberdade e desejar morrer por ela.



Sei que não me entendes ainda quando te falo na “liberdade de ser escravo de quem quer que seja”, idéia que não é fácil. Para não ser escravo fiel de um único senhor, e ser escravo de todos, ter-se-á em primeiro lugar que matar o opressor, digamos, por exemplo, o Czar. Este crime político nunca poderia ser perpetrado sem um grande ideal de liberdade e motivos revolucionários. É, portanto, necessário fundar um partido revolucionário de liberdade sob a égide de um homem verdadeiramente grande, seja ele Jesus Cristo, Marx, Lincoln ou Lenin. Claro está que este grande homem tomará a tua liberdade muito a sério. Para a impor, terá que rodear-se de uma multidão de homens menores, ajudantes e moços de recados, dada a imensidade de tarefa para um só homem. Tu não, irias entendê-lo, e deixá-lo-ias de lado, se ele se rodeasse de gente um pouco superior. Assim escudado, ele conquista para ti o poder, ou uma parcela da verdade, ou uma nova e melhor crença. Escreve evangelhos, promulga leis liberais, e conta com o teu apoio, seriedade e prontidão. Arranca-te do lameiro social onde te encontras imerso. Para manter solidários os muitos acólitos de menor talhe, para conservar a tua confiança, o homem verdadeiramente grande sacrifica pouco a pouco a sua grandeza que ele só pôde cultivar na sua profunda solidão espiritual, longe de ti e do teu bulício quotidiano mas em estreito contacto com a tua vida. Para te poder guiar, terá de conseguir que o transformes num Deus inacessível, pois que jamais obteria a tua confiança se permanecesse o simples homem que é, um homem a quem fosse, por exemplo, possível amar uma mulher sem estar casado com ela. E assim engendras um novo amo. Promovido ao seu novo papel senhorial, eis que o grande homem mingua, pois que a grandeza lhe estava na inteireza, simplicidade, coragem e proximidade da vida. Os seus medíocres acólitos, grandes mercê da aura dele, assumem os altos cargos das finanças, da diplomacia, do governo, das ciências e das artes – e tu ficas onde estavas: no lameiro, pronto a esfarrapares-te novamente em nome do “futuro socialista” ou do “Terceiro Reich”. Continuarás a viver em barracas com telhados de palha e paredes rebocadas de estrume, mas muito ufano dos teus palácios da cultura. Basta-te a ilusão de que governas – até que sobrevenha a próxima guerra e a queda dos novos tiranos.



Em países distantes, homens medíocres estudaram com afinco a tua ânsia de ser escravo e descobriram como tornar-se grandes homens medíocres com um mínimo de esforço intelectual. Esses homens vêm das tuas fileiras, nunca habitaram palácios. Passaram fome e sofreram como tu - mas aprenderam a encurtar o processo de mudança dos chefes. Aprenderam que cem anos de árduo trabalho intelectual em prol da tua liberdade, de grandes sacrifícios pessoais pelo teu bem-estar, de holocausto até da vida nos interesses da tua libertação, eram preço demasiado alto pela tua próxima nova escravatura. Tudo o que pudesse haver sido elaborado ou sofrido em 100 anos de vida de grandes pensadores podia ser destruído em menos de cinco anos. Os homúnculos da tua estirpe aprenderam, assim, a abreviar o processo: fazem-no mais aberta e brutalmente. E dizem-te sem rebuços que tu, a tua vida, os teus filhos e a tua família não contam, que és estúpido e subserviente e que podem fazer de ti o que lhe aprouver. E em vez de liberdade pessoal prometem-te liberdade nacional. Não te prometem dignidade pessoal mas respeito pelo Estado; grandeza nacional em vez de grandeza pessoal. E como “liberdade pessoal” e “grandeza” são para ti apenas conceitos estranhos e obscuros, enquanto “liberdade nacional” e “interesses do Estado” são palavras que te enchem a boca, como ossos que fazem nascer a água na boca de um cão, não há amém que não lhes dê. Nenhum desses homens medíocres paga pela liberdade autêntica o preço que pagaram Giordano Bruno, Cristo, Karl Marx ou Lincoln. Nem tu lhes interessas a ponta de um chavelho. Desprezam-te como tu te desprezas, Zé Ninguém. E conhecem-te bem, muito melhor do que um Rockefeller ou os Conservadores. Conhecem os teus podres como só tu próprio os devias conhecer. Sacrificam-te a um símbolo e és tu próprio quem lhes confere o poder que exercem sobre ti. Ergueste tu próprio os teus tiranos, e és tu quem os alimenta, apesar de terem arrancado as máscaras, ou talvez por isso mesmo. Eles mesmo te dizem clara e abertamente que és uma criatura inferior, incapaz de assumir responsabilidades, e que assim deverás permanecer. E tu nomeia-los novos “salvadores” e dá-lhes “vivas”.



É por isso que eu tenho medo de ti, Zé Ninguém, um medo sem limites. Porque é de ti que depende o futuro da humanidade. E tenho medo de ti. porque não existe nada a que mais fujas do que a encarar-te a ti próprio. Estás doente, Zé Ninguém, muito doente, embora a culpa não seja tua. Mas é a ti que cabe libertares-te da tua doença. Já há muito que terias derrubado os teus verdadeiros opressores se não tolerasses a opressão e não a apoiasses tu próprio. Nenhuma força policial do mundo poderia prevalecer contra ti se tivesses ao menos uma sombra de respeito por ti próprio na tua vida quotidiana, se tivesses aprofunda convicção de que, sem o teu esforço, a vida sobre a terra não seria possível por nem uma hora mais. Será que o teu “libertador” te disse? Qual quê! Chama-te “Proletário do Mundo”, mas não te dizem que tu, e só tu, és responsável pela tua vida (em vez de seres responsável pela “honra da pátria”).



Terás que entender que és tu quem transforma homens medíocres em opressores e torna mártires os verdadeiramente grandes; que os crucificas, os assassinas e os deixas morrer de fome; que não te ralas absolutamente nada com os seus esforços e as lutas que travam em teu nome; que não fazes a menor idéia de quanto lhes deves do pouco de satisfação e plenitude de que gozas na vida.



Dizes: “Antes de confiar em ti, gostaria de saber qual a tua filosofia da vida.” Quando souberes a minha filosofia da vida vais a correr ao presidente da Câmara, ou ao “Comitê contra as Atividades Antiamericanas”, ou ao F.B.I., ao G.P.U. ou à imprensa sensacionalista, ou à Ku Klux Klan, ou aos “Líderes dos Proletários de Todo o Mundo”, ou pura e simplesmente safas-te:



Não sou um Vermelho, nem um Branco, nem um Negro, nem um Amarelo.



Não sou nem cristão, nem judeu, nem maometano, mórmon, homossexual, polígamo, anarquista ou membro de seita secreta.



Faço amor com a minha mulher porque a amo e a desejo e não porque tenha um certificado de casamento ou para satisfazer as minhas necessidades sexuais.



Não bato nas crianças, não vou à pesca e não mato veados nem coelhos. Mas não atiro mal e gosto de acertar no alvo.



Não jogo brídge, não dou festas com o fito de divulgar as minhas teorias. Se o que penso é correto divulgar-se-á por si próprio.



Não submeto o meu trabalho às autoridades oficiais de saúde, a não ser que elas possam entendê-lo melhor do que eu. E sou em quem decide quem pode manejar o conhecimento e as particularidades da minha descoberta.



Observo estritamente o cumprimento das leis quando fazem sentido, e luto contra elas quando obsoletas ou absurdas. (Não corras já para o presidente da Câmara, Zé Ninguém, porque se ele for um homem decente faz o mesmo).



Desejo que as crianças e os adolescentes experimentem com o corpo a sua alegria no prazer tranqüilamente.



Não creio que para ser religioso no sentido genuíno da palavra seja necessário destruir a vida afetiva e tornar-se crispado e encolhido de corpo e de espírito.



Sei que aquilo a que chamas “Deus” existe, mas de forma diferente da que pensas: é a energia cósmica primordial do Universo, tal como o amor que anima o teu corpo, a tua honestidade e o teu sentimento da natureza em ti ou à tua volta.



Ponho na rua quem quer que seja que, sob qualquer pretexto insignificante, tente interferia no meu trabalho clínico e pedagógico com doentes ou crianças. Confrontá-lo-ia em tribunal com algumas perguntas simples e claras a que não lhe seria possível responder sem cobrir a cara de vergonha para o resto da vida. Porque eu sou um homem de trabalho que sabe o que um homem é por dentro, que sabe o que o outro vale e que deseja que seja o trabalho a governar o mundo, e não as opiniões sobre o trabalho. Tenho a minha opinião e sei distinguir uma mentira da verdade que quotidianamente emprego como instrumento e que sei manter limpo após uso.



Tenho muito medo de ti, Zé Ninguém, um enorme e profundo medo, e nem sempre foi assim. Eu já fui um Zé Ninguém entre milhões de outros. Hoje, como cientista e psiquiatra, sei ver que és doente e perigoso na tua doença. Aprendi a reconhecer o fato de que é a tua doença emocional que te destrói minuto a minuto, e não qualquer poder exterior. Há muito já que terias suprimido os tiranos se estivesses vivo e são no teu íntimo. Hoje em dia os teus opressores vêm das tuas próprias fileiras, tal como outrora vinham dos estratos mais altos da hierarquia social. Ainda são mais medíocres do que tu, Zé Ninguém. Porque, tendo conhecido por experiência a tua miséria, é necessária muita mediocridade para utilizar esse conhecimento com vista à tua supressão ainda mais perfeita e eficaz.



Tu não tens sequer a capacidade de reconhecer um homem verdadeiramente grande. O seu modo de ser, o seu sofrimento, as suas aspirações, raivas e lutas, em teu nome são-te completamente alheios. Nem sequer entendes que existem homens e mulheres incapazes de suprimir-te ou explorar-te e que genuinamente desejam que sejas livre, real o verdadeiramente livre. Nem te agradam, porque são de outra natureza. São simples e diretos; para eles, a verdade corresponde às tuas tácticas. Vêem-te à transparência, não em derisão, mas em mágoa pelo destino dos homens. Mas tu sentes apenas que olham através de ti, e tens medo. Só os aclamas, Zé Ninguém, quando muitos outros Zés Ninguéns te dizem que esses grandes homens são grandes. Tens medo deles, do tão perto que estão da vida e do amor que lhe têm. O grande homem ama-te simplesmente como criatura humana, ser vivo.



Deseja apenas que cesse o teu sofrimento milenar. Que cales o teu milenar cacarejo. Que não mais sejas besta de carga como o tens sido, porque ama a vida e desejaria vê-la liberta do sofrimento e da ignomínia. És tu que levas os homens verdadeiramente grandes a desprezarem-te, a retirarem-se com tristeza do teu convívio medíocre, a evitarem-te e, pior de tudo, a terem compaixão de ti. Se fosses psiquiatra, Zé Ninguém, um Lombroso, por exemplo, tentarias esmagá-los como a criminosos irrecuperáveis ou psicóticos. Porque os objetivos da vida dum grande homem são diversos dos teus - não consistem na acumulação de bens, nem no casamento socialmente adequado das filhas, nem na sua carreira política, nem na obtenção de honras acadêmicas ou do Prêmio Nobel. E porque não é como tu, chamas-lhe “gênio” ou “excêntrico”. Mas o grande homem apenas se reserva o direito de ser um ser humano. Chamas-lhe “a-social”, porque prefere o seu gabinete de trabalho ou o seu laboratório, a sua linha de pensamento e o seu trabalho às tuas festinhas ridículas e destituídas de sentido. Chamas-lhe louco porque prefere gastar o seu dinheiro na investigação científica em vez de comprar ações ou outros bens. Na tua degenerescência, Zé Ninguém, ousas considerá-lo como “anormal” o homem simplesmente reto, pois que o comparas contigo, o protótipo da “normalidade”, o “homo normalis”. Ao medi-lo com a tua medida estreita não lhe encontras as dimensões da tua normalidade. Nem entendes, Zé Ninguém, que és tu que o afastas das tuas reuniõezinhas sociais, que apenas lhe são insuportáveis, quer nas tabernas quer nos salões de baile, porque te ama e deseja genuinamente auxiliar-te. O que o torna aquilo que é após várias décadas de sofrimento? Tu, na tua irresponsabilidade, na tua tacanhez, na tua incapacidade de refletir, e os teus “axiomas eternos” que não sobrevivem a dez anos de progresso social. Lembra-te apenas de todas as coisas que tomaste por certas durante os escassos anos que decorreram entre a primeira e a segunda guerra mundiais. Quantas reconheceste como erradas, de quantas foste capaz de te retratar? De nenhumas, Zé Ninguém. Porque o homem realmente maior pensa cautelosamente, mas quando se apropria de uma idéia, pensa a longo prazo. E és tu, Zé Ninguém, que fazes do grande homem um paria quando o seu pensamento correto e duradouro enfrenta a mesquinhez e a precariedade das tuas convicções. És tu que o condenas à solidão, não à solidão que gera grandes obras, mas à solidão do temor da incompreensão e do ódio. Porque tu és “o povo”, a “opinião pública” e a “consciência social”. Já alguma vez pensaste na responsabilidade gigantesca que estes atributos te conferem, Zé Ninguém? Já alguma vez perguntaste a ti próprio se pensas corretamente, quer do ponto de vista da trajetória social onde estás inserido, quer da natureza, quer até do acordo com os atos humanos de uma figura como, por exemplo, a do Cristo? Não, Zé Ninguém, nunca te inquietaste com a possibilidade do que pensas estar errado, mas sim com o que iria pensar o teu vizinho ou com o preço possível da tua honestidade. Foram estas as únicas questões que puseste a ti próprio.



E depois de condenares o grande homem à solidão é ainda teu hábito esquecê-lo. Segues o teu caminho, perorando outras asneiras, cometendo outras baixezas, ferindo de novo. Esqueces. Mas é da natureza do grande homem não esquecer nem vingar-se, mas tentar entender A INCONSISTÊNCIA DO TEU COMPORTAMENTO.



Sei que também te é estranho que assim seja. Podes crer, porém, que o sofrimento que infliges tantas vezes inconscientemente - e que quantas vezes logo esqueces - é para o grande homem, mesmo se incurável, motivo de reflexão em teu nome, não pela grandeza dos teus atos vis, mas exatamente pela sua pequenez. E é ele quem se interroga sobre o que te leva a maltratar o marido ou a mulher que te desapontou, a torturar os teus filhos porque desagradam a vizinhos odiosos, a desprezar e explorar alguém só porque é bondoso; a receber quando te dão e a dar quando te exigem, mas nunca a dar quando o que te é dado o é por amor; a bater em quem já está de rastos; a mentir quando te é pedida a verdade e a persegui-la bem mais do que à mentira. Zé Ninguém, tu estás sempre do lado dos opressores. Para que o estimasses e te caísse em graça, o grande homem teria de se adaptar ao teu modo de ser, Zé Ninguém, falar como tu e gabar-se das mesmas virtudes. A verdade é que se ostentasse as tuas virtudes, falasse a tua linguagem e gozasse da tua amizade não mais seria grande, autêntico ou simples. Prova é que os teus amigos que dizem exatamente o que esperas que eles digam nunca foram grandes homens. Tu não acreditas que qualquer amigo teu possa conseguir o que quer que seja de grande. No mais intimo de ti próprio, desprezas-te, mesmo quando – ou particularmente quando – gabas mais da tua dignidade; e se te desprezas, como poderias respeitar os teus amigos? Nunca poderias acreditar que quem quer fosse que se sentasse à tua mesa ou vivesse na mesma casa contigo pudesse realizar o que quer que fosse de grandioso.



Perto de ti é difícil pensar, Zé Ninguém. É apenas possível pensar acerca de ti, nunca contigo. Porque tu sufocas qualquer pensamento original. Tal como uma mãe, tu dizes às crianças que exploram o seu mundo: “Isso não é próprio para crianças”. Como um professor de biologia, dizes: “Isso não é coisa para bons alunos. O quê, duvidar da teoria dos germes do ar?” Como um professor primário, dizes: “As crianças são para ser vistas, e não para se ouvirem”. Como uma mulher casada, dizes: “Há! A investigação! Eu e a tua investigação! Porque é que não vais para um escritório, como toda a gente, ganhar decentemente a tua vida?” Mas sobre o que se escreve nos jornais tu acreditas, quer percebas quer não.



Garanto-te, Zé Ninguém, que perdeste o sentido do que mais vale em ti mesmo. Morre de sufocação às tuas mãos, em ti e onde quer que o encontres nos outros, nos teus filhos, na tua mulher, no teu marido, no teu pai e na tua mãe. Tu és medíocre e queres continuar a sê-lo.



Perguntas-me como sei eu tudo isto? Eu digo-te:



Conheço-te. Experimentei-te e experimentei-me contigo. Como terapeuta libertei-te da tua mesquinhez, como educador orientei-te no sentido da espontaneidade, da confiança. Sei como te defendes da espontaneidade, sei o terror que te toma quando te pedem que sejas tu próprio, autêntico e genuíno.



Eu sei que não és apenas medíocre, Zé Ninguém. Sei que também tens as tuas grandes horas na vida, momentos de “júbilo” e “exaltação”, de “vôo”. Mas falta-te a coragem para subir cada vez mais alto, para manter a tua própria exaltação. Tens medo de altos vôos, medo da altura e da profundidade, Nietzsche já te disse isto muito melhor, há muitos anos já. Só que não te disse porque é que és assim. Tentou transformar-te num super-homem, um Übermensch que superasse o que tens de humano. O Übermensch (Além-Homem ou Super-Homem) tornou-se “Führer Hitler”. Tu permaneceste Üntermensch. Eu gostaria apenas que fosses tu próprio. Tu próprio, em vez do jornal que lês ou da balofa opinião do vizinho. Sei que não sabes o que és e como és em profundidade. Sei que em profundidade és como o animal acossado, como o teu próprio Deus, como o poeta ou o sábio. Mas crês ser o membro da Legião ou do teu clube ou da Ku Klux Klan. E como crês sê-lo, ages em conseqüência. Também isto já foi dito por outros: Heinrich Mann, na Alemanha, há vinte e cinco anos, Upton Sinclair, Dos Passos e outros, nos Estados Unidos. Mas tu nunca ouviste falar de Mann ou de Sinclair. Só conheces os campeões de boxe e Al Capone. Se tivesses de escolher entre o ambiente de uma biblioteca e o de uma taberna, escolhias o da taberna.



Exiges que a vida te conceda a felicidade, mas a segurança é-te mais importante, ainda que custe a dignidade ou a vida. Como nunca aprendeste a criar felicidade, a gozá-la e a protegê-la, não conheces a coragem do indivíduo reto. Queres saber o que és, Zé Ninguém? Ouve os anúncios publicitários dos teus laxantes, das tuas pastas de dentes e desodorizantes. Mas não ouves a música da propaganda. Não distingues a abissal estupidez e o mau gosto de coisas que se destinam a ficar-te no ouvido. Já alguma vez prestaste atenção às piadas que o intelectualóide larga a teu respeito nas revistas? Piadas sobre ti e sobre ele, piadas de um mundo reles e desgraçado. Escuta a tua publicidade aos laxantes e saberás o que és.



Escuta, Zé Ninguém: a miséria da existência humana é visível à luz de cada um destes pequenos horrores. Cada ato mesquinho teu faz retroceder de mil passos qualquer esperança que possa restar quanto ao teu futuro. E sentes isto tão penosamente que, para não o saberes, inventas graças de mau gosto e chamas-lhes “humor popular”. Ouves a piada que te humilha e ris-te com os outros. Ris-te do Zé Ninguém, sem entender que é de ti que te ris, tal como milhões de outros Zés Ninguéns. Já alguma vez perguntaste a ti próprio por que razão dá espaço ao longo dos séculos à tal brincadeira maliciosa? Já alguma vez te chocou até que ponto “as pessoas” são ridículas nos filmes? Vou tentar dizer-te por que razão és ridículo e vou dizer-te porque te levo muito, mesmo muito, a sério:



Consegues sempre faltar à verdade naquilo que pensas, à imagem do excelente atirador que, se assim o quiser, consegue acertar sempre mesmo abaixo do centro do alvo. Há já muito que poderias ser senhor de ti próprio, se tentasses pensar corretamente. Só que tu pensas assim:



“A culpa é dos judeus”. “Que é um judeu?” – pergunto eu. “São pessoas com sangue judeu” – respondes. “Qual é a diferença entre o sangue judeu e o outro?” Aqui estacas, hesitas, ficas confuso e respondes: “Quero dizer, dá raça dos judeus”. “Que é raça?” – pergunto eu. “Raça? É simples, assim como existe uma raça germânica, existe a raça dos judeus”. “Que é que caracteriza a raça dos judeus?” “Bom, um judeu tem cabelos pretos, tem uma bossa no nariz e olhos muito vivos. Os judeus são avarentos e capitalistas.” “Já alguma vez viste um francês do Sul ou um italiano ao Pé dum judeu? Sabes distinguí-los?” “Lá isso não sei assim muito bem” “Bom, então que é um judeu? As análises de sangue não mostram qualquer diferença, não se distingue de um francês ou de um italiano. E já alguma vez viste judeus alemães?” “Já, pois, parecem alemães.” “E que é um alemão?” “Um alemão pertence à raça ariana nórdica.” “Os Índios são arianos?” “São.” “E são nórdicos?” “Não.” “E loiros?’ “Não.” “Bom, então não sabes o que é um alemão e o que é um judeu.” “Mas há judeus.” “Pois há, tal como há cristãos e maometanos.” “Eu refiro-me à religião judaica.” “Roosevelt era holandês?” “Não.” “Então porque é que chamas judeu a um descendente de David, se não chamas holandês ao Roosevelt?” Com os judeus é diferente. “Em que é que é diferente?” “Não sei.”



E é assim que tu desatinas, Zé Ninguém. E sobre os teus desatinos levantas exércitos capazes de assassinar dez milhões de pessoas, porque são “judeus”, sem que tu saibas sequer dizer o que é um judeu. E é por isso que és ridículo, que o melhor é evitar-te quando se tem alguma coisa de sério para fazer, é por isso que permaneces no lameiro. Quando dizes “judeu” sentes-te superior. E és forçado a dizê-lo pela tua própria miséria, pois o que matas no judeu é o que sentes que tu próprio és. Mas isto é apenas uma ínfima parcela da tua verdade, Zé Ninguém.



Quando dizes “judeu” cheio de arrogância e desprezo sentes menos a tua própria mesquinhez. Só recentemente me dei conta de que assim era. Só chamas “judeu” a quem suscita muito pouco ou demasiado o teu respeito. A tua concepção de “judeu” é perfeitamente arbitrária. Só que eu não te dou o direito a usá-la, quer tu sejas judeu ou ariano. Só eu próprio tenho o direito a determinar quem sou. Biológica e culturalmente sou um rafeiro e orgulho-me de ser o produto intelectual e físico de todas as classes, raças e nações, orgulho-me de não pertencer a uma “raça pura”, como tu, de não pertencer a uma “classe pura”, de não ser chauvinista como tu, um fascistinha de todas as nações, raças e classes. Constou-me que em Israel rejeitaste um técnico judeu pelo simples fato de não ser circuncidado. Não tenho mais afinidades com os judeus fascistas do que com quaisquer outros. Porque recuas apenas até Sem, e não até ao protoplasma? A vida para mim tem início nas contrações plasmáticas, e não no escritório de um rabi.



Levou milhões de anos a tua evolução de água-viva a bípede terrestre. A tua aberração biológica sob a forma de rigidez dura apenas há seis mil anos. Levará cem ou quinhentos ou talvez cinco mil anos até que redescubras em ti a natureza, a célula inicial. Eu descobri em ti a água-viva e, quando me ouviste pela primeira vez, chamaste-me gênio. Foi na Escandinávia, andavas tu à procura de um novo Lenin. Mas eu tinha coisas mais importantes a fazer e declinei a função.



Também me proclamaste novo Darwin, ou Marx, ou Pasteur, ou Freud. Disse-te já há muitos anos que também tu poderias falar e escrever como eu, se não passasses a vida a saudar os novos messias. Porque os teus gritos destroem-te a razão e paralisam a tua natureza criadora.



Não és tu que persegues a “mãe solteira” como uma criatura imoral, Zé Ninguém? Não és tu que estabeleces uma distinção severa entre as crianças “legítimas” e as crianças “ilegítimas?” Pobre criatura, que não entendes as tuas próprias palavras - ou não és tu que veneras o Cristo enquanto criança? Cristo menino, que nasceu de uma mãe que não possuía certificado de casamento? Sem fazeres idéia de que assim seja, como veneras no Cristo criança o teu desejo de liberdade sexual! Fizeste do Cristo criança, nascido ilegitimamente, o filho de Deus, que não reconhece a ilegitimidade de crianças. Para logo em seguida, como Paulo, o Apóstolo, perseguir os filhos nascidos do amor e proteger sob a alçada das leis religiosas os nascidos do ódio. És realmente um desgraçado, Zé Ninguém!



Os teus automóveis e comboios atravessam as pontes que o grande Galileu inventou. Sabias, Zé Ninguém, que o grande Galileu teve três filhos sem qualquer certificado de casamento? Isso não dizes tu às crianças da escola. E não foi também por isso mesmo que o submeteste à tortura?



Sabias, Zé Ninguém, que, na “Pátria dos Povos Eslavos”, o teu grande Lenin, pai dos proletários de todo o mundo, ao tomar o Poder aboliu o casamento compulsivo? E sabias que ele próprio viveu com a mulher sem certificado de casamento? E foi então que pela mão do chefe de todos os Eslavos restabeleceste as leis referentes à obrigatoriedade do casamento, porque não sabias que havias de fazer da liberdade que te fora concedida por Lenin.



Mas o que é que tu sabes de tudo isto, tu que não fazes a mínima idéia do que seja a verdade, ou a história, ou a luta pela liberdade? Quem és tu para teres opinião própria?



Nem sequer te apercebes de que a opressão das leis que regulam a tua vida matrimonial decorre naturalmente do teu espírito pornográfico e da tua irresponsabilidade sexual.



Sentes-te infeliz e medíocre, repulsivo, impotente, sem vida, vazio. Não tens mulher e, se a tens, vais com ela para a cama só para provar que és “homem”. Nem sabes o que é o amor. Tens prisão de ventre e tomas laxantes. Cheiras mal e a tua pele é pegajosa, desagradável. Não sabes envolver o teu filho nos braços, de modo que o tratas como um cachorro em quem se pode bater à vontade. A tua vida vai andando sob o signo da impotência, no que pensas, no teu trabalho. A tua mulher abandona-te porque és incapaz de lhe dar amor. Sofres de fobias, nervosismo, palpitações. O teu pensamento dispersa-se em ruminações sexuais. Falam-te de economia sexual. Algo que te entende e poderia ajudar-te. Que te permitiria viveres à noite a tua sexualidade e que te deixaria livre durante o dia para pensar e trabalhar. Que te faria ter nos braços uma mulher sorridente em vez de desesperada, ver os teus filhos sãos em vez de pálidos, amorosos em vez de cruéis. Mas quando ouves falar de economia sexual dizes: “O sexo não é tudo. Há outras coisas importantes na vida”. És assim, Zé Ninguém.



Ou suponhamos que és um “marxista”, um “revolucionário profissional”, um futuro “dirigente dos Proletários do Mundo”. Dizes querer libertar as massas do seu sofrimento. As massas enganadas fogem-te desiludidas e tu gritas enquanto corres no seu encalço: “Parai, massas proletárias! Sou o vosso libertador! Abaixo o capitalismo!” Enquanto eu falo às massas, pequeno-revolucionário, e lhes digo da miséria das suas pequenas vidas. Ouvem-me, com entusiasmo e esperança. Acorrem às tuas organizações onde esperam encontrar-me. É, então que dizes: “A sexualidade é uma invenção pequeno-burguesa. O que conta é o fator econômico”. E lês os livros de Van de Velde sobre técnicas sexuais.



Quando um grande homem dedicou a sua vida a tentar dar à tua emancipação econômica uma base científica, deixaste-o morrer de fome. Mataste a primeira via de verdade que surgiu no teu desvio das leis da vida. Quando a sua primeira tentativa foi bem sucedida, tomaste-lhe as rédeas da administração e cometeste segundo crime. Da primeira vez, o grande homem dissolveu a organização. Da segunda, estava já morto e nada podia contra ti. Não entendeste que ele havia descoberto no teu trabalho o poder de vida que cria os valores. Não entendeste que a sua reflexão sociológica pretendia. ser a salvaguarda da tua sociedade contra o teu Estado.



Não entendes nada!



E mesmo com os teus fatores econômicos não vais longe. Outro grande homem matou-se a trabalhar para provar-te que terás de melhorar as tuas condições econômicas para que a tua vida tenha sentido e gosto; que indivíduos com fome jamais farão progredir a cultura; que todas as condições de vida terão de ter lugar aqui e agora, sem exceção, que terás de emancipar-te, tu e a tua sociedade, de todas as formas de tirania. Este outro grande homem apenas cometeu um erro ao tentar esclarecer-te: acreditou deveras na tua capacidade de emancipação. Acreditou que uma vez conquistada a tua liberdade serias capaz de a preservar. E cometeu ainda outro erro: consentir que tu, proletário, te tornasses “ditador”.



E sabes o que tu fizeste, Zé Ninguém, do manancial de sabedoria e criação que te legou este homem? Apenas guardaste no ouvido uma palavra: ditadura. De tudo o que te doara um grande espírito e um grande coração apenas uma palavra restou: ditadura! Tudo o mais deitaste fora, a liberdade, a clareza e a verdade, a solução dos problemas da servidão econômica, a metodologia da planificação do futuro - tudo pela borda fora! E apenas a escolha infeliz, embora bem intencionada, de só uma palavra, te caiu em graça: ditadura!



Sobre esta pequena negligência de um grande homem construíste todo um sistema gigantesco de mentiras, perseguição, tortura, deportações, enforcamentos, polícia secreta, espionagem e denúncia, uniformes, marechais e medalhas - enquanto deitavas fora tudo o mais. Começas a perceber como funcionas, Zé Ninguém? Ainda não? Ora tentemos novamente: As “condições econômicas” do teu bem-estar na vida e no amor, confundiste-as com “mecanização”; a emancipação dos homens, com “grandeza do Estado”; o levantamento das massas, com o desfilar da artilharia; a libertação do amor, com a violação de todas as mulheres a que pudeste deitar a mão ao chegar à Alemanha; a eliminação da pobreza, com a erradicação dos pobres, dos fracos e dos desadaptados; a assistência à infância, com a “formação de patriotas”; o controle da natalidade, com medalhas às “mães de dez filhos”. Não tinhas já sofrido bastante, com esta tua idéia da “mãe de dez filhos”?



Mas também noutros países o infeliz vocábulo “ditadura” te ficou no ouvido. Aí, vestiste-o de uniformes resplandecentes e geraste no teu próprio seio o funcionariozinho místico, sádico e impotente que te levou ao Terceiro Reich e enterrou sessenta milhões da tua espécie enquanto ias gritando “Viva! Viva!”.



És assim, Zé Ninguém. Mas ninguém se atreve a dizer como és. Porque se tem medo de ti, Zé Ninguém, e se quer que te mantenhas pequeno.



Tu devoras a tua felicidade. Nunca foste capaz de a gozar com plenitude. É por isso que a devoras avidamente, sem sequer assumires a responsabilidade de a assegurares. Nunca te foi permitido aprenderes a cuidar das tuas alegrias, a alimentar a felicidade, como o jardineiro o faz com as suas flores, como o homem da terra com as suas colheitas.



Os grandes cientistas, poetas e homens de sabedoria sempre fugiram da tua companhia, pois desejaram preservar a alegria que lhes fosse possível. É fácil devorar a felicidade na tua companhia, Zé Ninguém, mas é difícil protegê-la.



Não sabes do que estou a falar, Zé Ninguém? Eu explico-te: um inovador trabalha durante dez, vinte ou trinta anos sem desfalecimentos na sua ciência, ou máquina, ou concepção da sociedade. Tudo o que é novo carrega-o consigo como pesado fardo. Terá de sofrer a, tua estupidez, a mesquinhez das tuas idéias e valores, terá de entendê-las e analisá-las e, finalmente, terá de substituí-las pelos seus atos. Não o ajudarás em nada, Zé Ninguém. Pelo contrário. Não virás dizer-lhe, “ouve, camarada, bem vejo como trabalhas”. E trabalhas na minha máquina, para os meus filhos, a minha mulher, os meus amigos, a minha casa, os meus campos, para que as coisas sejam outras. Sofri durante muito tempo por isto ou por aquilo, mas nada podia fazer. “Posso agora ajudar-te a ajudar-me?” Não, Zé Ninguém, nunca ajudas quem te ajuda. Jogas às cartas ou esfalfas-te a berrar em espetáculos de competição ou vais marrando no teu trabalho no escritório ou na mina. Mas nunca ajudas quem te ajuda. E sabes porquê? Porque todo aquele que é inovador nada mais tem a oferecer-te de início do que idéias. Nem lucro, nem um salário mais alto, nem bônus de Natal, nenhum modo de vida mais fácil. Tudo o que pode oferecer-te são preocupações, e isso já tu tens que chegue.



Mas se apenas te tivesses mantido afastado, sem oferecer ou dar ajuda, nenhum inovador iria queixar-se de ti. Bem vistas as coisas, não é “para ti” que pensa, descobre, inventa. Fá-lo porque o seu funcionamento vital o impele a que assim seja. Quanto ao cuidado e à compaixão por ti, deixa-os a cargo dos lideres partidários e dos homens do clero. O que realmente lhe seria agradável seria o ver-te capaz de cuidar de ti próprio. Só que tu não te contentas com manteres-te à margem, sem oferecer ajuda. Quando o inovador, após longa e árdua tarefa, finalmente entende os motivos por que és incapaz de dar satisfação no amor à tua mulher, tu vens e chamas-lhe obsceno. Nem fazes a menor idéia de que lhe chamas isso porque es permanentemente forçado a esconder a obscenidade em ti próprio e que por isso és incapaz de amar. Ou então, quando o investigador descobre por que motivo o cancro atinge em massa as populações e tu és, por exemplo, Professor de Patologia do Cancro com um sólido salário, dizes que o investigador é uma fraude, ou que não entende nada sobre os germes do ai-que gasta verbas demasiado elevadas; ou perguntas se é judeu ou estrangeiro; ou insistes que tens direito a examiná-lo a fim de saberes se é suficientemente qualificado para trabalhar no teu problema do cancro, o problema que não consegues resolver; ou preferes ver condenados muitos doentes cancerosos a ter de admitir que foi ele quem descobriu a possibilidade de salvar os teus doentes. Para ti, a tua dignidade catedrática, a tua conta no banco, ou as tuas ligações com a indústria do rádio, significam mais que a verdade e o conhecimento. E é por isso que és medíocre e desgraçado, Zé Ninguém.



Isto é, não só não dás apoio como perturbas maliciosamente o trabalho que te é destinado ou feito em teu beneficio. Entendes agora porque te é negada a alegria? Porque é algo que se trabalha e se ganha. Mas tu apenas sabes devorar a alegria, que por isso te escapa. Com o decorrer do tempo, o inovador consegue finalmente convencer um grande número de pessoas de que a sua descoberta tem valor imediato, ou seja, de que com ela é possível o tratamento de determinadas doenças, ou levantar pesos, ou fazer explodir rochedos, ou penetrar o interior da matéria por meio de radiações. Acreditas depois de ler nos jornais, porque o que vês, não. Respeitas os que te desprezam e desprezas-te a ti próprio, por isso te não é possível crer por teus próprios meios. Mas se a descoberta surge nos jornais, embarcas a correr. Passas a considerar o inovador um “gênio”, embora seja o mesmo homem a quem ontem chamavas fraudulento, obsceno, charlatão ou ameaça à moral pública. Agora é “gênio”. Tu não sabes o que é “gênio”, tal como não sabes o que é “judeu”, ou “verdade” ou “felicidade”. Eu digo-te, Zé Ninguém, tal como Jack London te disse no seu livro Martin Eden. Sei que o leste milhares de vezes, mas sem o entender: “Gênio” é a marca registrada do produto quando passa a estar à venda. Se realmente o inovador (que ontem era obsceno ou doido) é um gênio, passa a ser possível devorar a felicidade que te oferece. Porque há agora uma multidão de Zés Ninguéns que grita em uníssono contigo: “Gênio! Gênio!” E a multidão vem em cachos comer o produto à mão que lho estende. E se és médico, terás muito mais doentes, aos quais poderás oferecer melhores condições de tratamento e ganharás muito dinheiro. “E então? - dizes tu, Zé Ninguém –, que mal tem isso?” Nenhum, está certo que se ganhe dinheiro com um trabalho honesto e competente. O que não está certo é nada dar à descoberta em si, não a desenvolver, explorá-la apenas. Que é exatamente o que fazes, sem dar um passo para o seu desenvolvimento. Tomas posse do que te dão mecanicamente, com avidez, estupidamente, sem lhe anteveres as possibilidades ou as limitações. Quanto às Possibilidades, nem poderias entendê-las, e tentas ultrapassar as limitações recusando-te a reconhecê-las. Se és médico ou bacteriologista, como sabes que a cólera ou a febre tifóide são doenças infecciosas, passas a vida à procura do microrganismo causador do cancro, perdendo assim estupidamente décadas de investigação. Outro grande homem provou-te outrora que as máquinas obedecem a certas leis; de modo que constróis máquinas de morte e que consideras a vida como mais uma máquina. O teu erro nesta matéria não foi de três décadas, mas de três séculos; conceitos perfeitamente errôneos passaram a fazer parte integrante da atividade científica de centenas de milhares de investigadores; a própria vida se encontra ameaçada, porque a partir deste momento - em nome da tua dignidade, ou da tua cátedra, ou religião, ou conta no banco, ou rigidez de caráter – perseguiste, massacraste e tentaste por todas as formas lesar todos aqueles que empreenderam prosseguir no estudo da função vital.



Sem dúvida que te agrada possuir “gênios” e render-lhes a devida homenagem. Mas queres um gênio bom, um homem de moderação e decoro, sem fantasia, isto é, um gênio comedido e adaptado, não um gênio rebelde e livre, capaz de quebrar as tuas barreiras e limitações. Queres o gênio limitado, tratável, uma máscara que possas passear sem medo e em triunfo pelas ruas das tuas cidades.



És assim, Zé Ninguém. Bom na acumulação e no dispêndio, mas incapaz de criar. E é por isso que és o que és, toda a vida fechado num escritório solitário ou agarrado ao estirador, preso no colete-de-forças conjugal, ou professor das crianças que odeias. Incapaz de progredir ou de gerar algo de novo, porque és capaz de servir-te do que outros te oferecem em bandeja de prata.



Não entendes porque é assim, porque não pode ser doutra maneira? Eu digo-te, Zé Ninguém, porque eu aprendi a ver-te como o animal rígido que me trazia no seu vazio, na sua impotência, na sua doença mental. Só sabes sorver e apanhar, não sabes criar ou dar, porque a atitude básica do teu corpo é a retenção e o despeito; porque entras em pânico de cada vez que sentes os impulsos primordiais do AMOR e da DÁDIVA. É, por isso que tens medo de dar. A tua permanente avidez só tem um significado: és continuamente forçado a encher-te de dinheiro, de satisfações, de conhecimento, porque te sentes vazio, esfomeado, infeliz, ignorante e temendo a sabedoria. É, por isso que foges da verdade, Zé Ninguém – ela poderia fazer-te amar. Saberias então o que tento, inadequadamente, dizer-te. E isso tu não queres, Zé Ninguém. Só queres que te deixem em paz como consumidor e patriota.



“Ouçam isto! Este tipo nega o patriotismo, a base do Estado e do seu órgão fundamental, a família! Isto não pode ficar assim!”



É assim que gritas “aqui-d'el-rei” quando alguém te denuncia a prisão de ventre mental. Não queres nem ouvir nem saber, queres berrar “vivas”. Mas porque não me deixas dizer-te por que razão és incapaz de alegria? Vejo-te o susto nos olhos - sente-se até que ponto o assunto te afeta profundamente. A “questão religiosa”, por exemplo. Afirmas defender a “tolerância religiosa”; afirmas o teu direito à liberdade em matéria religiosa. Perfeito. Mas queres mais: queres que a tua religião seja a única. És intolerante quanto às outras. Ficas desesperado quando encontras alguém que, em vez de um Deus pessoal, adora a natureza e procura entendê-la. Preferes que os cônjuges em vias de separação se processem judicialmente, se acusem de imoralidade ou de brutalidade quando já não lhes é possível viver juntos. Tu, que és descendente de homens rebeldes, és incapaz de reconhecer o divórcio por mútuo consentimento - porque a tua própria obscenidade te assusta. Queres a verdade num espelho, algures onde não possas chegar-lhe. O teu “chauvinismo” decorre naturalmente da tua rigidez, da tua prisão de ventre mental, Zé Ninguém. E não o digo com sarcasmo, porque te estimo, embora seja teu hábito esmagar os que te estimam e dizem a verdade.



Repara, por exemplo, nos teus patriotas: não andam, marcham. Nem odeiam o inimigo – o que acontece é que têm “inimigos hereditários” que de dez em dez anos passam à categoria de amigos hereditários, e vice-versa. Não cantam – berram hinos marciais. Não fazem amor – “comem-nas” e têm um curriculum de “fudidas”, por noite. Estas são as verdades que tenho para dizer-te, Zé Ninguém, e contra as quais nada tens a opor, exceto o assassínio, o mesmo que perpetraste contra tantos outros homens que te estimavam: Jesus, Rathenau, Karl Liebknecht, Lincoln e muitos outros. Na Alemanha costumavas chamar-lhe “depuração”. A longo prazo foste tu que foste “depurado” aos milhões – mas continuas a ser um patriota.



Desejas amar e ser amado, amas o teu trabalho e é dele que vives, e a base do teu trabalho é o meu conhecimento e o de outros. O amor, o trabalho e o conhecimento não têm pátria, não conhecem fronteiras nem uniformes. São internacionais, são o patrimônio da humanidade. Só que tu preferes o teu patriotismo medíocre porque tens medo do amor genuíno, do trabalho responsável, medo do conhecimento. E por isso exploras o amor, o trabalho e o conhecimento dos outros, mas nunca poderás criar. Por isso usas a tua alegria como um ladrão furtivo, por isso não consegues suportar sem azedume e inveja a felicidade dos outros.



“Agarra que é ladrão! Não passa dum estrangeiro, dum imigrante. Eu não, eu sou alemão, americano, dinamarquês, norueguês!”



Pára com isso, Zé Ninguém! Tu és e hás-de ser sempre o eterno imigrante e emigrante. Vieste parar a este mundo por acidente e hás-de deixá-lo sem que ninguém dê por isso. Berras porque tens medo. A pouco e pouco, o teu corpo devém rígido e seco. É por isso que tens medo e chamas a polícia. Mas tão-pouco a tua polícia tem poder sobre a verdade. Mesmo o teu polícia se me vem queixar da mulher e dos filhos doentes. Quando se pavoneia de uniforme lá vai escondendo o homem; mas não de mim, que já o vi nu.



“O tipo tem registro criminal? Tem os papéis em ordem? Pagou os impostos? Passem-lhe uma busca. O homem é uma ameaça ao Estado e à honra da Nação!”



Por acaso, Zé Ninguém, sempre foi possível identificar-me, sempre tive os papéis em ordem e paguei os impostos. O que te rala não é o estado do Estado ou a honra da Nação. Tens é medo que eu exponha em público o que de ti fui conhecendo no consultório médico. É por isso que tentas inventar-me um crime político que me meta na cadeia durante anos. Eu conheço-te, Zé Ninguém. Se por acaso és juiz de comarca estás muito menos interessado em proteger a lei ou os cidadãos do que em fazer vista com o “caso” que te há-de levar a juiz de primeira instância. Ao Sócrates aconteceu-lhe o mesmo. Mas a história nunca te ensinou o que quer que fosse. Assassinaste Sócrates, e como não sabes o que fizeste, continuas na lama. Acusaste-o de perverter o teu código moral. Mas ele continua a fazê-lo, Zé Ninguém – assassinaste-lhe o corpo, não o espírito. E continuas a assassinar, em nome da “ordem”, mas covardemente, pelas costas. És incapaz de me encarar quando me acusas de imoralidade. Porque sabes bem qual de nós é imoral, obsceno e pornográfico. Alguém afirmou uma vez que de toda a gente que conhecia só havia um que não contava piadas porcas – era eu. Quanto a ti, quer sejas juiz ou chefe da policia, conheço as tuas piadas porcas e sei de onde vêm, de modo que é melhor não abrires a boca. Talvez consigas provar que paguei cem dólares a menos de impostos, ou que atravessei a fronteira entre dois estados com uma mulher, ou que parei para falar com uma criança na rua. Mas é na tua boca que qualquer destes fatos assume o caráter equivoco e reles de um ato vil. E, como não sabes mais nada, pensas que eu sou da tua espécie. Não, Zé Ninguém, não sou, e nunca fui como tu nessas matérias. E tanto me faz que acredites ou não, embora tu detenhas a força e eu o conhecimento – são funções diversas.



É assim que dás cabo da tua existência: em 1924 sugeri um estudo científico da natureza humana. Reagiste entusiasticamente.



Em 1928, o nosso trabalho apresentava os primeiros resultados tangíveis – continuaste entusiástico e eu tive honras de spiritus rector.



Em 1933, os resultados em questão deveriam ser publicados pela tua casa editora. Hitler acabara de subir ao Poder. Eu acabara de entender que a subida de Hitler ao Poder estava ligada à tua rigidez de atitudes. Recusaste-te então a publicar o livro que te demonstrava como havias produzido Hitler.



O livro, no entanto, foi publicado e continuaste entusiástico. Só que tentaste abafá-lo no silêncio, pois que o teu “Presidente” se tinha declarado publicamente contra ele.



Tinha, aliás, também aconselhado às mães a que suprimissem a excitação genital das crianças sustendo-lhes a respiração.



Durante doze anos mantiveste-te silencioso sobre o livro que tinha suscitado o teu entusiasmo. Em 1946 foi reeditado e aclamaste-o então como “um clássico”. Ainda hoje parece entusiasmar-te.



Passaram-se, entretanto, vinte e dois longos anos, carregados de ansiedades e trabalhos, desde que comecei a transmitir-te que mais importante que o tratamento individual é a prevenção da perturbação mental. Durante vinte e dois anos te afirmei que as pessoas caem nesta ou naquela forma frenética de existir ou se enterram em lamentações estéreis porque lhes são impossíveis o amor e o prazer. Porque os seus corpos, ao inverso do que acontece nas outras espécies animais, não mais possuem a capacidade de contrair-se e expandir-se no ato do amor.



Vinte e dois anos depois de eu o ter afirmado, di-lo tu agora aos teus amigos: mais importa a prevenção das perturbações mentais do que o seu tratamento individual. E de novo ages como o tens feito há milhares de anos: falas dos grandes objetivos sem te preocupares com a forma de os alcançar. Esqueces a dimensão afetiva da vida das massas. Preconizas a “prevenção das perturbações mentais”, aspiração inócua e muito digna. Mas julgas ser possível fazê-lo ignorando a prevalência generalizada da frustração no domínio sexual. Nem sequer consentes que se fale nisso. E assim, também como médico não tens saída.



Que pensarias tu de um técnico que revelaste a técnica de vôo e guardasse como secretas as características do motor e da hélice? É assim que funcionas como técnico de psicoterapia – covardemente. Aceitas o que das minhas idéias te convém, mas rejeitas-lhe os espinhos. Vais-me chamando, cheio de subentendidos pornográficos, “o profeta do bom orgasmo”. Ouve, psiquiatrazinho, nunca te impressionaram as queixas de mulheres recém-casadas, com o corpo violado por maridos impotentes? Ou a angústia dos adolescentes que sofrem de amor insaciado? Será que tens em maior conta a tua segurança que a dos teus doentes? Até quando irás preferir a tua dignidade medíocre à tua responsabilidade terapêutica? Durante quanto tempo mais serás capaz de escamotear o fato de que as tuas táticas sacrificam milhões de vidas?



A segurança é-te mais importante que a verdade. A primeira vez que ouviste falar do orgone, descoberta minha, não foste capaz de te interrogar quanto à sua utilidade, às suas possibilidades de aplicação terapêutica, mas sim se eu possuía ou não documentação que me permitisse praticar a medicina no estado do Maine. Nem entendes que as tuas exigências burocráticas, se pouco ou nada perturbam o meu trabalho, ainda menos o impedem. Será que nem sequer tens consciência do meu prestígio como investigador, da ligação do meu nome à descoberta da peste emocional e da energia vital - que ninguém menos qualificado que eu poderá examinar-me?



Vejamos quanto à tua avidez de liberdade. Nunca ninguém te perguntou porque sempre te foi impossível alcançá-la ou por que razão, se alguma vez o conseguiste, imediatamente a depositaste nas mãos de novos amos.



“Ouçam isto! Este monstro atreve-se a duvidar do levantamento revolucionário dos proletários de todo o mundo, atreve-se a duvidar da democracia! Abaixo a contra-revolução! Fora com ele!”



Não te excites, chefezinho de todos os democratas e de todos os proletários do mundo. É, minha firme convicção de que a tua futura liberdade real depende mais da tua resposta a esta pergunta do que de milhares de resoluções dos teus congressos de Partido.



“Fora com ele! Corrompe a honra da nação e a vanguarda do proletariado revolucionário! Fora! Rua! Encostem-no à parede!”



Mas não são os teus “vivas” e os teus “morras” que te irão aproximar dos teus objetivos, Zé Ninguém. Sempre acreditaste que a tua liberdade se acha assegurada através da perseguição dos opositores. Ao menos uma vez na vida encara-te de frente.



“Fora! Fora!”



Pára. um minuto, Zé Ninguém. Não é minha intenção menosprezar-te, mas apenas provar-te por que razão até agora te não foi possível alcançar a liberdade ou garanti-la. Será que o tema não te interessa?



“Fora! Fora!”



Posso garantir-te que vou ser breve: tentarei, dizer-te como se comporta o Zé Ninguém cada vez que se acha numa situação de liberdade. Suponhamos que és estudante num Instituto que, entre outros, defende os, valores da saúde sexual das crianças e dos adolescentes. A “extraordinária idéia” entusiasma-te, de modo que desejas participar na luta. Vou contar-te o que aconteceu na minha escola: os meus alunos estavam sentados ao microscópio a observar microrganismos. Tu estavas sentado no acumulador de orgone, nu. Chamei-te para que participasses da observação. Foi então que decidiste sair tal como estavas do acumulador, exibindo-te diante das raparigas e das mulheres. Admoestei-te imediatamente, mas não pareceste entender porque o fazia. Parecia-me inverossímil que o não entendesses. Mais tarde, em longa conversa, admitiste que na base do teu comportamento estava exatamente a imagem que tinhas dum Instituto que defendia a liberdade sexual. Tomaste então consciência do fato de que tinhas o maior desprezo pelo Instituto e pela sua idéia de base e que havia sido por isso que te tinhas comportado indecentemente.



Um outro exemplo que demonstra a forma como destróis a tua liberdade: tu sabes e eu sei e todos, sabemos que vives num estado de permanente frustração sexual; que facilmente encaras com avidez qualquer membro do outro sexo; que as conversas que tens com os amigos sobre temas sexuais se resumem ao repertório de anedotas obscenas; que, em suma, a tua imaginação é, sobretudo, pornográfica. Uma noite ouvi-te passar berrando com os teus amigos pela rua fora:



“Nós queremos mulheres! Nós queremos mulheres!”



Dado que o teu futuro faz parte das minhas preocupações, tentei criar instituições onde pudesses compreender melhor a tua miséria e modificá-la. Tu e os teus amigos vieram, em magotes a reuniões que organizei no âmbito dessas instituições. E sabes porque foi assim, Zé Ninguém? Ao início cheguei a pensar que te movia um genuíno interesse, a vontade de dares novo sentido à tua vida. Só mais tarde entendi o que realmente te motivara. Pensavas que irias encontrar uma nova forma de bordel, onde seria fácil encontrar uma rapariga sem gastar um tostão. E quando o entendi, destruí por minhas próprias mãos as instituições que criara tentando ajudar-te. Não porque me pareça que haja algo de errado no fato de poderes encontrar uma rapariga nessas reuniões, mas porque a intenção com que vinhas a essas reuniões era vil. Por isso as destruí, por isso mais uma vez ficaste onde estavas... Tens alguma coisa a dizer?



“O proletariado foi corrompido pela burguesia. Os líderes do proletariado são quem poderá solucionar o problema. Irão sanear os costumes com um punho de ferro – o problema sexual do proletariado só assim poderá ser solucionado”.



Eu sei o que tu queres dizer, Zé Ninguém. Foi exatamente o que se passou na tua pátria dos proletários: deixar que o problema sexual se resolvesse por si próprio. O resultado viu-se em Berlim, com os soldados proletários violando mulheres a torto e a direito. Sabes que foi assim. Os teus campeões da “honra revolucionária”, “os soldados do proletariado do mundo” prometeram-te o suficiente para a vergonha te durar uns séculos. Dizes que estas coisas “só acontecem na guerra”? Então conto-te uma outra história:



Um outro chefe, cheio de entusiasmo pela ditadura do proletariado, não o era menos quanto à economia sexual. Veio ter comigo e disse-me: “Você é extraordinário. Karl Marx mostrou-nos como é possível a liberdade econômica; você aponta-nos a via para a liberdade sexual; foi capaz de nos dizer: Fodam o mais que puderem”. Na tua mente tudo se perverte. Aquilo a que eu chamo um ato de amor, é, na tua vida, um ato pornográfico. E nem sequer sabes do que estou a falar, Zé Ninguém. E é por isso que sempre retornas ao lameiro. Se por acaso tu, Maria Ninguém, dás em professora sem que possuas quaisquer qualificações especiais para tal e apenas porque nunca tiveste filhos, os efeitos da tua ação são desastrosos. O teu trabalho deveria ser comunicar com as crianças e educá-las. Qualquer educação válida engloba um conhecimento da sexualidade infantil. Mas para poder entender a sexualidade infantil é necessário conhecer por experiência própria o que é uma relação de amor. E tu és obesa, desajeitada e sem qualquer atrativo, o que necessariamente te leva a odiar qualquer corpo humano dotado de graça e vivacidade. Não é evidentemente por seres gorda e pouco atraente que te censuro, nem por jamais teres conhecido o amor de um homem (nenhum que fosse minimamente saudável to teria oferecido), nem sequer pelo fato de não entenderes o amor das crianças. Mas porque tens na conta de virtude a tua total ausência de atrativos e a tua incapacidade de amar e porque esmagas com o teu ódio a afetividade das crianças a teu cargo, ainda que exerças as tuas funções numa “escola progressista”. O que é um crime e te transforma numa monstruosidade, mulherzinha. A tua influência perniciosa consiste em alienares a afeição que crianças saudáveis sentem por pais saudáveis; em considerares o saudável afeto de uma criança como um sintoma patológico. Em estenderes a toda a tua influência o formato de barril do teu corpo: pensas como um barril, e educas como um barril; em não saberes retirar-te para um lugar modesto e tentares impor aos outros a tua presença opaca, a tua falsidade e o teu ódio amargo sob a máscara do teu falso sorriso.



E tu, Zé Ninguém, porque consentes que sejam estas mulheres a educar os teus filhos ainda saudáveis, porque lhes permites, destilar a amargura no espírito, és o que és, vives como vives, pensas como pensas e o mundo é como é. Vieste procurar-me para tentar aprender aquilo que havia sido o fruto do meu trabalho, aquilo porque me bati e bato. Sem mim terias sido um médico obscuro de clínica geral em qualquer aldeia ou cidade de província. Engrandeci-te através do acesso ao meu conhecimento e às técnicas terapêuticas. Ensinei-te a detectar o modo como é suprimida a liberdade, como a servidão é imposta e mantida. Foi então que assumiste uma posição de responsabilidade como expositor do meu trabalho num outro país - em total liberdade no sentido pleno da palavra confiei na tua honestidade. Mas tu mantinhas-te dependente de mim, pois por ti próprio pouco ou nada eras capaz de criar. Precisavas de mim como base de conhecimento, como fonte de autoconfiança, perspectiva do futuro e, sobretudo, desenvolvimento. Tudo isto eu te ofereci com alegria, Zé Ninguém, sem nada pedir em troca. Foi então que declaraste que eu te havia “violado”. Tornaste-te agressivo, na esperança de te tornares livre. Confundir porém a imprudência com a liberdade sempre foi a marca do escravo. Na tua tentativa de liberdade deixaste de me enviar relatórios do teu trabalho. Sentias-te livre – liberto da cooperação e da responsabilidade. E é por isso, Zé Ninguém, que és o que és, e é por isso que o mundo é o que é.



Fazes uma idéia, Zé Ninguém, de como se sentiria uma águia que estivesse a chocar ovos de galinha? De começo a águia julga que está a chocar apenas pequenas águias que virão a tomar volume idêntico ao seu. Mas o que acaba por sair são sempre frangos. Desesperada, a águia espera que os frangos ainda possam vir a ser águias. O tempo passa e o que finalmente surge são galinhas cacarejantes. Então, nasce na águia a tentação de comer frangos e galinhas de uma assentada, e apenas uma pequena réstia de esperança a impede de o fazer. A esperança de que um dia surja do bando de frangos uma pequena águia capaz de sondar a distância a partir dos píncaros, de detectar novos mundos, novas formas de pensar e viver. E só esta esperança impede a triste e solitária águia de devorar os frangos e galinhas, que nem sequer se dão conta de que uma águia os sustenta e acolhe, que vivem num íngreme rochedo, bem acima dos vales perdidos. Nunca olharam para a distância como a águia solitária. Limitaram-se a engorgitar dia após dia o que a águia lhes trazia de alimento. Deixaram-se aquecer debaixo das suas asas poderosas sempre que chovia ou trovejava, enquanto ela suportava a tempestade sem qualquer proteção. Ou chegaram a atirar-lhe pedras pelas costas, nos piores dias. Quando deu por isso, o primeiro impulso foi desfazê-los, mas, pensando melhor, encheu-se de compaixão. Esperava ainda que algum dia haveria de surgir dos muitos frangos míopes e cacarejantes uma pequena águia capaz de a acompanhar.



Até hoje, a águia ainda não desistiu. De modo que continua a criar frangos. Tu não queres ser águia, Zé Ninguém, e é por isso que és comido pelos abutres. Tens medo das águias, e é por isso que vives em grandes bandos e és comido em grandes bandos. Porque algumas das tuas galinhas chocaram os ovos de abutre e os abutres foram então os teus chefes contra as águias, as águias que desejariam ter-te levado mais longe, mais alto. Abutres que te ensinaram a comer cadáveres e a contentar-te com alguns grãos de trigo, a berrar: “Viva, Viva, Abutre!”. E apesar das tuas privações e da tua condenação aos milhares, continuas a ter medo das águias que protegem os teus frangos.



Construíste sobre a areia a tua casa, a tua vida, a tua cultura e a tua civilização, a tua ciência e técnica, o teu amor e a tua educação de crianças. Não o sabes, Zé Ninguém, nem queres sabê-lo, e abates o grande homem que intente dizer-te. Na tua agonia, são sempre as mesmas questões que te afligem:



“O meu filho é obstinado, destrutivo, tem pesadelos de noite, não consegue concentrar-se no trabalho escolar, sofre de prisão de ventre, tem má cor, é uma criança cruel. Que hei-de fazer? Ajudem-me!”.



Ou: “A minha, mulher é frigida, incapaz de afeto. Agride-me, tem ataques histéricos, anda por aí com vários homens. Que hei-de fazer? Diga-me que hei-de fazer.”



Ou: “Outra guerra, depois de termos lutado numa que deveria pôr fim a todas as outras. Que havemos de fazer ?”



Ou: “A civilização de que tanto nos orgulhamos está a decair num processo de inflação. Há milhões de pessoas com fome, gente que mata, rouba, destrói e abandona toda a esperança. Que havemos de fazer?”



“Que havemos de fazer?” Eis a tua interrogação milenar.



O destino de toda a aquisição cultural importante, firmada na prevalência da verdade sobre a segurança, é o de ser avidamente devorada e em seguida expelida pelo homem comum. Muitos foram os homens corajosos e solitários que te disseram o que deverias fazer. E sempre distorceste o que te era comunicado, sempre os conduziste à amargura e à destruição. Sempre lhes pegaste na palavra pela ponta errada, preferindo como regra de vida a pequena margem de erro à grande verdade; no cristianismo, na formação socialista, no conceito de soberania popular, em tudo o que tocaste, Zé Ninguém. Perguntas porque é assim, porque és assim? Não creio que ponhas a questão a sério e vais odiar-me quando ouvires a verdade: construíste a tua casa sobre a areia e agiste assim ao longo dos séculos porque és incapaz de respeitar a vida, porque até o amor dos teus filhos destróis antes que tenha tido tempo de desabrochar, porque não suportas nenhuma forma de espontaneidade viva, nenhum movimento livre e natural. E porque não podes tolerá-lo, entras em pânico e perguntas: “Quem é o Sr. Silva e o que é que irá dizer o Sr. Pereira?” És covarde na tua atividade intelectual, porque a atividade intelectual fecunda acompanha a vitalidade e o movimento do corpo, e tu temes o teu corpo. Muitos foram os grandes homens que te disseram: escuta a tua voz interior – segue a verdade do que sentes – venera o teu amor. Mas tu não deste atenção a tais palavras. Foram palavras perdidas no deserto, apelos mortos no vazio do teu nada, Zé Ninguém.



Foi-te oferecida a escolha entre a exigência de superação do Übermensch de Nietzsche e a degradação do Üntermensch em Hitler. Berrando “Viva”, escolheste o Üntermensch.



Foi-te dado a escolher entre a constituição genuinamente democrática de Lenin e a ditadura de Stalin escolheste a ditadura de Stalin.



Tiveste a escolha entre a elucidação de Freud da origem sexual das tuas perturbações emocionais e a sua teoria da adaptação cultural. Escolheste a sua filosofia cultural, que não te trazia qualquer apoio, e esqueceste a teoria sexual. Pudeste escolher entre a magnificente simplicidade de Cristo e Paulo, com o seu celibato para os padres e o seu casamento indissolúvel. Escolheste o celibato e o casamento indissolúvel esquecendo a mulher simples que pariu seu filho, Jesus, apenas por amor. Tiveste a escolha entre a concepção de Marx da produtividade do teu poder de trabalho como única fonte do valor dos produtos e a concepção de Estado. Esqueceste a tua força de trabalho e escolheste a idéia de Estado. Durante a Revolução Francesa tinhas a escolher entre o cruel Robespierre e o grande Danton. Escolheste a crueldade e enclausuraste a grandeza de alma e a bondade. Na Alemanha, tinhas a escolha entre Göering e Himmler, por um lado, e Liebknecht, Landau e Mühsam, no pólo oposto. Deste a Himmler o cargo de chefe de polícia e assassinaste os teus verdadeiros amigos. Tinhas a escolher entre Julius Streicher e Walter Rathenau – assassinaste Rathenau.



Tinhas a escolher entre Lodge e Wilson - assassinaste Wilson. Poderias ter escolhido entre a crueldade da Inquisição e a verdade de Galileu. Escolheste torturar Galileu, de cujas descobertas ainda hoje beneficias, submetendo-o a toda a espécie de humilhações, e, em pleno século XX, continuas a utilizar os mesmos métodos da Inquisição.



Tens a escolher entre a compreensão da doença mental e as terapêuticas de choque – escolhes estas, de modo a não teres de enfrentar as dimensões monstruosas da tua própria miséria, preferindo a cegueira onde só de olhos bem abertos te poderias salvar.



Tens de escolher entre a ignorância da natureza da célula cancerosa e o que me foi possível desvendar dos seus segredos, a salvação possível de milhões de vidas humanas. Mas continuas a repetir as mesmas asneiras acerca do cancro em jornais e revistas, mantendo o silêncio sobre o que poderia salvar o teu filho, a tua mulher ou a tua mãe. Morres de fome, mas defendes dos maometanos a sacralidade das tuas vacas, Zé Ninguém indiano. Andas esfarrapado, Zé Ninguém de Itália e Eslavo de Trieste, mas o que mais parece ralar-te é saber se Trieste é “italiano” ou “eslavo”. Sempre pensei que Trieste fosse um porto internacional. Enforcas os nazis depois de terem assassinado milhões de pessoas. Onde é que estavas antes? Dezenas de cadáveres não bastam para fazer-te pensar, apenas milhões? Cada um destes atos mesquinhos dá sinal da tua monstruosidade de animal humano. Dizes: “Mas porque diabo levas tudo isto tão a sério? Sentes-te responsável por todo o mal?” Esta é a questão que te condena. Se tu, Zé Ninguém, saldo das fileiras de milhões como tu, tomasses a teu cargo apenas uma pequena parcela da tua responsabilidade, o mundo não seria o mesmo e todos os grandes que te estimam não seriam condenados à morte pela tua mesquinhez. É, porque não assumes qualquer responsabilidade que a tua casa assenta sobre areia. O teto abate-se sobre a tua cabeça, mas conservas a honra “proletária” ou “nacional”. O chão esvai-se-te debaixo dos pés, mas continuas a berrar: “viva, grande chefe, viva a Alemanha, a Rússia, o povo judeu!” Os teus filhos agonizam, mas continuas a preconizar “a disciplina e a ordem” que lhes impões batendo. A tua mulher adoece, mas tu consideras que construir a tua casa sobre um rochedo não passa de mais uma “fantasia de judeu”.



Na tua enorme aflição vens ter comigo e dizes-me: “Meu Bom, Querido e Extraordinário Doutor! Que hei-de fazer? A minha casa esboroa-se, o vento sopra-lhe dentro, a minha mulher e os meus filhos estão doentes e eu também. Que hei-de fazer?” A resposta é: constrói a tua casa sobre um rochedo. Rochedo que és tu próprio, a tua própria natureza destorcida, o amor físico dos teus filhos, a esperança amorosa da tua mulher, o que esperavas da vida aos 16 anos. Troca as tuas ilusões por um pouco de verdade. Manda os teus políticos e diplomatas dar uma volta. Esquece o teu vizinho e escuta a tua própria voz – o teu vizinho fica-te grato. Diz aos teus camaradas de trabalho que desejas trabalhar em nome da vida, não ao serviço da morte. Não corras para assistir às execuções dos teus carrascos e vitimas, cria as leis que protegem a vida humana e os seus bens. Leis essas que serão os pilares de rocha viva onde assentares a tua casa. Protege o amor das crianças de tenra idade dos ataques de adultos lascivos e frustrados. Não aceites a solteirona intriguista - expõe publicamente os seus malefícios ou manda-a para o reformatório, em vez de lá abandonares adolescentes carecidos de afeto; se a tua posição profissional é de direção. Não tentes ser mais explorador que quem tenta explorar-te. Deita fora as tuas calças de fantasia e o teu chapéu alto e não peças autorização oficial para amares a tua mulher. Cantata com gentes de outros países, pois são teus semelhantes, no que tens de bom e de mau. Deixa, pois, que o teu filho cresça como a natureza (ou “Deus”) o gerou. Não tentes melhorar a natureza, mas antes entendê-la e protegê-la. Vai às bibliotecas em vez de ires assistir a espetáculos de competição, viaja por outros países e vez de ires a Coney Island. E, acima de tudo, procura PENSAR CORRETAMENTE, ouve a tua voz interior e o seu murmúrio brando. Tens a vida nas tuas mãos. Não a entregues a outrem e muito menos aos chefes que elegeres. SÊ TU PRÓPRIO. Muitos foram os grandes homens a propor-te.



“Ouçam este pequeno-burguês reacionário e individualista! O tipo desconhece a marcha inexorável da história. 'Conhece-te a ti próprio' – diz ele. A asneira burguesa do costume! O proletariado revolucionário mundial, conduzido pelo seu bem-amado chefe, pai de todos os povos, de todos os Russos, de todos os Eslavos, libertará o povo. Abaixo os individualistas e anarquistas!”



E vivam os Paizinhos de todos os povos, de todos os Eslavos, Zé Ninguém! Ouve bem agora, que tenho algumas predições graves a fazer-te: estás de fato em vias de te apropriares do mundo, o que te aterra. Durante séculos, irás assassinar os teus amigos e saudar como teus senhores os chefes de todos os povos, de todos os Russos. Dia após dia, semana após semana e década após década, louvarás senhor após senhor, esquecendo os gemidos dos teus filhos, ignorando a agonia dos teus adolescentes, as aspirações dos teus homens e mulheres, ou, se acaso os escutares, chamar-lhe-ás individualismo burguês. Em lugar de protegeres a vida, irás derramando o sangue atrás dos séculos, na crença de que apenas alcançarás a liberdade com o auxílio de carrascos – de novo e de novo enterrado na lama por tuas próprias mãos. Continuarás através dos séculos a seguir embusteiros e energúmenos, cego e surdo ao apelo da VIDA, A TUA PRÓPRIA VIDA. Porque tu temes a vida, Zé Ninguém, e a destróis na crença de que o fazes em nome do “socialismo”, ou do “Estado”, ou da “honra nacional”, ou da “glória de Deus”. Há algo, no entanto, que não sabes ou não queres saber: que és tu que geras a tua própria miséria, hora após hora, dia após dia; que não entendes os teus filhos e que tu próprio lhes partes a espinha antes de terem -sequer uma oportunidade de desenvolver-se; que devoras o amor; que és avaro e ávido de poder – que mantém o cão preso para te sentires “dono”. Caminharás errante através dos séculos e estarás condenado à mesma morte em massa dos teus iguais no meio da miséria social generalizada; até que do horror da tua existência possa surgir-te um escasso núcleo de lucidez. Até que aprendas a buscar o teu verdadeiro amigo no homem de trabalho, de amor e de sabedoria, até que aprendas a entendê-lo e a respeitá-lo. Entenderás então que mais importa para a verdadeira vida uma biblioteca que um desafio desportivo; o deambular pelo campo em meditação do que o exibir-se onde quer que seja; o poder de sarar do que o de morte; a saudável estima por si próprio do que a consciência nacional, e a humildade bem mais que a exaltação patriótica ou qualquer outra.



Pensas que os fins justificam os meios, ainda que estes sejam vis. Enganas-te: o fim é a trajetória com que o alcanças. Cada passo de hoje é a tua vida de amanhã. Nenhum objetivo verdadeiramente grande poderá ser alcançado por meios vis – tens bem a prova de que assim é em todas as revoluções sociais. A vileza ou a desumanidade duma dada trajetória torna-te vil e desumano, e o fim inatingível.



“Como poderei então servir os objetivos do amor cristão, do socialismo, da Constituição americana?”



O teu amor cristão, o teu socialismo, a tua Constituição americana assentam sobre a tua vida quotidiana, sobre o que pensas no teu dia-a-dia, sobre o modo como fazes amor com a tua companheira, sobre a tua atitude face ao trabalho como TUA RESPONSABILIDADE SOCIAL, sobre a forma como evitas ser o supressor da tua própria vida. Mas és tu, Zé Ninguém, que abusas das liberdades que te são concedidas pela Constituição e que assim a destróis, em vez de tentares consolidá-la na tua vida quotidiana. Assisti à forma com tu, refugiado alemão, abusaste da hospitalidade sueca. Eras nesse tempo o futuro chefe de todos os povos suprimidos da terra. Lembras-te do costume sueco do smörgasbord? Uma mesa cheia de pratos e doces diversos que cada um pode escolher como lhe aprouver. Este costume parecia-te novo e estranho; parecia-te impossível uma tal confiança na honestidade alheia. Disseste-me então, sem te dares conta da perversidade da tua satisfação, que não tinhas comido durante todo o dia de modo a poderes empanzinar-te de borla à noite. “Passei fome quando era criança” – disseste. Eu sei, Zé Ninguém, porque te vi passar fome e sei o que é a fome. Mas desconheces que é assim, roubando smörgasbord, que perpetuas a fome dos teus filhos, tu, futuro salvador de todos os famintos. Há coisas que se não devem fazer, tais como roubar as colheres de prata, ou a mulher, ou o smörgasbord de uma casa que'te oferece hospitalidade. Depois da catástrofe alemã, encontrei-te meio morto de fome num parque. Disseste-me que o “Auxílio Vermelho” do teu partido se tinha recusado a ajudar-te, porque tendo perdido o teu cartão de identidade não podias provar que eras membro inscrito. Os teus chefes de todos os famintos distinguem a fome segundo a cor de quem a sofre. Nós reconhecemos apenas a fome onde a encontramos. És assim nas pequenas causas. Vejamos nas grandes: tomaste a grande decisão de abolir a exploração da era capitalista e o menosprezo da vida humana, de fazer reconhecer os teus direitos, pois que há cem anos a exploração, o desprezo pela vida humana e a ingratidão eram a regra generalizada. Mas então havia respeito pelos grandes feitos e lealdade para com os que geravam grandes, coisas, havia o reconhecimento dos talentos e dos dotes. E o que tens agora, Zé Ninguém?



Por onde quer que hajas entronizado os teus pequenos chefes, a exploração da tua força é ainda mais grave que o era há cem anos, o desdém pela tua vida mais brutal, e desapareceu todo e qualquer reconhecimento dos teus direitos. E nos países em que estás em vias de os pôr no poleiro, todo o respeito pela criação tende a desaparecer e a ser substituído pela apropriação abusiva dos frutos do trabalho árduo daqueles que te estimam. Recusas-te a reconhecer uma aptidão, porque pensas que, se o fizeres, não mais serás um americano livre, ou russo, ou chinês, recusas-te a respeitar e a reconhecer o que quer que seja. O que tentaste destruir - floresce mais vigorosamente que nunca; e o que tentaste salvaguardar e proteger, como, por exemplo, a tua própria vida, caminha para a destruição. Passaste a considerar a lealdade como mero “sentimentalismo” ou “hábito pequeno-burguês”, e o respeito pela criatividade como simples servilismo. Não entendes que és servil quando deverias ser irreverente e ingrato sempre que deves lealdade.



Na tua estupidez obstinada julgas possuir o reino da liberdade. Hás-de acordar do teu pesadelo estendido de borco no chão. Porque roubas o que te dão e das o que te roubam. Confundes o direito à liberdade de expressão e crítica com o comentário irresponsável e a graça parva. Desejas criticar, mas não queres ser criticado, o que te destrói. Queres poder atacar a coberto de qualquer ataque. É por isso que jogas na sombra.



“Chamem a polícia! O homem tem o passaporte em ordem? É realmente médico? O nome dele não consta do Who's Who, e a Ordem dos Médicos está contra ele”.



A polícia aqui não te serve de nada, Zé Ninguém. Destina-se a apanhar ladrões e a regular o tráfico, não a conceder-te a liberdade. Foste tu que a destruíste e continuarás a destruí-la com inexorável consistência. Antes da primeira guerra mundial não havia passaportes internacionais; podias viajar para onde quer que quisesses. A guerra levada a cabo em nome da “Liberdade e da Paz” acarretou consigo o controle de passaportes, que ficou para durar. Cada vez que queres percorrer trezentos quilômetros na Europa tens de pedir autorização aos consulados de pelo menos dez países. E assim continua sendo, anos depois de finda a segunda guerra, destinada a acabar com todas as guerras. E assim continuará a ser após a terceira e a enésima guerra final.



“Ouçam isto! A conspurcação do meu patriotismo, da honra e glória da Nação!”



Cala-te, Zé Ninguém. Há dois tipos de tons: o rolar da tempestade sobre a montanha e – o teu peido. Não passas de um peido e julgas-te perfumado a violetas. Se posso minorar o teu sofrimento neurótico, como te atreves a perguntar se venho no Who’s Who? Entendo a gênese do teu cancro, e os teus miseráveis comissários de Saúde Pública proíbem as minhas experiências com ratos. Ensinei os teus médicos a entender-te clinicamente, e a tua Ordem dos Médicos denuncia-me à polícia – e quando estás mentalmente doente administram-te choques elétricos, tal como na Idade Média usavam as grilhetas e o chicote.



Cala-te, desgraçado. Toda a tua vida é miséria. Não é minha intenção salvar-te, mas hei-de levar esta conversa contigo até ao fim, mesmo que me venhas bater à porta embuçado, pela calada da noite, trazendo nas tuas mãos sangrentas a corda para me enforcar. Não podes enforcar-me, Zé Ninguém, sem te pendurares na corda. Porque eu represento a tua vida, o teu sentimento do mundo, a tua humanidade, o teu amor e a tua alegria de criar. Não te é possível assassinar-me, Zé Ninguém. Outrora tive medo de ti, tal como anteriormente havia depositado em ti demasiada confiança. Mas consegui ultrapassar-te e encaro-te agora sob uma outra perspectiva - a do tempo, milhares de anos antes, milhares de anos depois. Quero que percas o medo de ti próprio, que vivas com maior plenitude e alegria. Que o teu corpo seja vivo em vez de rígido, que ames os teus filhos em vez de os odiares, que dês felicidade à tua mulher em vez de te entreteres a torturá-la maritalmente. Sou teu médico e, dado que habito este planeta, sou médico onde quer que esteja; não sou um alemão, ou um judeu, ou um cristão, ou um italiano, sou um cidadão da Terra. Para ti, por outro lado, só existem americanos angélicos e japoneses odiosos.



“Agarrem-no! Revistem-no! O homem tem licença para exercer medicina? Proclamem um decreto real a fim de que ele não possa praticar a medicina no nosso país livre! O tipo faz experiências com a função do prazer! Prendam-no! Expulsem-no do país!”



Fui eu próprio que granjeei o direito a exercer a minha atividade. Ninguém pode conceder-me. Fundei uma nova ciência que finalmente permite entender a vida. Tu próprio a hás-de usar dentro de dez, cem ou mil anos, tal como no passado devoraste avidamente outros contributos, quando sentiste a corda a chegar ao fim. O teu ministro da Saúde não tem poder sobre mim, Zé Ninguém. Apenas o teria se tivesse a coragem de conhecer a minha verdade – coragem que não tem. E é sendo assim que volta para o seu país e comunica ao público que eu me encontro internado num hospício na América e nomeia inspetor-geral dos Hospitais um homem medíocre que, numa tentativa de negar a função de prazer, tinha falsificado diversas experiências. Eu, por meu lado, Zé Ninguém, cá vou alinhando esta conversa. Queres maior prova da impotência dos teus poderes?



As tuas autoridades, comissários de saúde e catedráticos não poderão levar mais longe do que já levaram as proibições de que rodearam o meu trabalho de investigação do cancro. Todo o meu trabalho de dissecação e de observação ao microscópio foi feito, apesar de expressa proibição. As viagens levadas a cabo a Inglaterra e a França de nada serviram para prejudicar-me. Só lhes era possível ater-se ao terreno que sempre haviam conhecido – o da patologia. Enquanto eu, Zé Ninguém, salvei mais que uma vez a tua própria vida.



“Quando eu conseguir dar o poder aos meus chefes do proletariado alemão, havemos de o esmagar! Ele corrompe a nossa juventude proletária, afirma que o nosso proletariado padece das mesmas insuficiências sexuais que a burguesia, transforma as nossas organizações juvenis em bordéis! Afirma que sou um animal! Destrói a minha consciência de classe!”



É verdade que tento destruir os ideais que constróis à custa de ignorares o teu bom senso e a tua capacidade mental, Zé Ninguém. Só desejas a imagem irreal da tua esperança eterna, a que não te será possível alcançar. Mas só armado da verdade poderás ter a terra nas tuas mãos.



“Expulsem-no do país! É um sabotador da tranqüilidade e da ordem. É espião a soldo dos nossos inimigos de sempre. Comprou uma casa com dinheiro de Moscou (ou seria de Berlim?)!”



Tu não entendes, Zé Ninguém. Era uma vez uma velhinha que tinha medo de ratos. Era minha vizinha e sabia que eu tinha ratos no laboratório instalado na minha cave. Tinha medo que os ratos lhe trepassem pelas saias e por entre as pernas, medo que não teria se alguma vez houvesse conhecido a alegria do amor. Eram esses ratos que eu utilizava para tentar entender o processo de putrefação que é o teu cancro, Zé Ninguém. Acontece que eras meu senhorio e que a mulherzinha em questão te pediu para me pores na rua. Coisa que tu, com toda a tua coragem, a tua riqueza ética, fizeste de bom grado. Tive, pois, de comprar uma casa para poder continuar a observar os animais em teu proveito, sem que pudesses vir perturbar-me com a tua covardia. E que mais aconteceu depois disto, Zé Ninguém? Como delegado de Justiça, ambicioso e mesquinho, desejoso de utilizar a minha reputação de homem perigoso para tua promoção na carreira, denunciaste-me como espião alemão ou russo e conseguiste que a acusação me levasse à prisão. Mas valeu a pena assistir à tua perturbação e vergonha durante o julgamento. Cheguei a ter pena de ti, pobre funcionário público, tão miserável era a tua presença. E os agentes secretos que enviaste à minha casa com mandado de busca de “material de espionagem”, não pereciam particularmente respeitadores da tua pessoa. Encontrei-te mais tarde na pessoa de um pequeno juiz do Bronx, que albergava a frustração de não ter alcançado ainda assento em mais altas esferas. Acusaste-me então de possuir livros de Lenin e de Trotsky na minha biblioteca. Nem sequer sabes para que serve uma biblioteca. Disse-te então que também lá poderias encontrar Hitler, Buda, Jesus Cristo, Napoleão e Casanova. Porque, tal como tentei explicar-te então, a peste emocional deve conhecer-se na sua gênese e em todas as suas formas, o que pareceu surpreender-te, magistradozito.



“Prendam-no! É, fascista, despreza o povo!”



Tu não és o povo, pobre juiz de província. És tu que desprezas o povo, pois que preferes assegurar a tua carreira a tomar a defesa dos seus direitos. Muitos foram também os grandes homens que to disseram, homens que nunca ouviste nem leste. Faz parte do meu respeito pelas pessoas expor-me ao perigo de dizer-lhes a verdade. Posso jogar brídge contigo ou trocar algumas graças; mas nunca me sentarei à tua mesa porque tu és um defensor impotente dos Direitos do Homem.



“O homem é trotskista! Prendam-no! É, um agitador do povo, maldito comunista!”



Eu não agito o povo, mas sim a tua confiança em ti, a tua humanidade, e é isso que te é difícil de suportar. Porque aquilo que deveras desejas é um maior número de votos, ou a tua promoção social, ou um assento no Supremo, ou ser simplesmente o grande chefe de todos os proletários. A tua justiça e a tua mentalidade de ditador são a corda que garrota o progresso do mundo. Que fizeste a Wilson, esse grande e generoso Wilson? Para ti, juiz do Bronx, era apenas um “sonhador”; para ti, futuro chefe de todos os proletários, era um “explorador do povo”. Assassinaste-o, Zé Ninguém, com a tua indolência, a tua ignorância, o teu medo da esperança.



Quase me assassinaste também, Zé Ninguém. Lembras-te do meu laboratório, há dois anos? Eras então um simples assistente. Estavas desempregado e havias-me sido recomendado como socialista eminente, membro de um partido governamental. Recebeste um bom salário e eras livre, no pleno sentido da palavra. Inclui-te em todas as minhas deliberações, porque acreditei em ti e na tua missão. Lembras-te do que se passou? A liberdade subiu-te à cabeça. Durante dias, vi-te passeando de cachimbo na boca, sem fazer literalmente nada e sem que eu entendesse porquê. De manhã, quando eu chegava ao laboratório, esperavas em ar de provocação que fosse eu o primeiro a saudar-te. Eu gosto de saudar as pessoas em primeiro lugar, Zé Ninguém. Mas se esperam que eu o faça, isso aborrece-me porque, no teu entender das coisas, sou eu o teu “superior hierárquico”, o teu “patrão”. Deixei-te abusar da tua liberdade durante alguns dias e depois decidi-me a ter uma conversa contigo. Admitiste então, com lágrimas nos olhos, que não sabias o que fazer integrado neste novo sistema. Não estavas habituado à liberdade. No anterior local de trabalho nem sequer eras autorizado a fumar diante do teu chefe, partia-se do princípio que só abrias a boca quando te dirigiam a palavra, a ti, futuro chefe de todos os proletários. E quando te encontravas perante a liberdade genuína, a tua atitude era de impertinência e provocação. Entendi-te e conservei-te no lugar. Pouco tempo depois despediste-te e foste relatar tudo o que sabias das minhas experiências a um psiquiatra “policial”. Foste tu o informador secreto, um dos hipócritas e delatores que instigaram a campanha de imprensa que se desencadeou contra mim. És assim, Zé Ninguém, sempre que te é dado a provar a liberdade-só que, contrariamente às tuas intenções, a tua campanha fez o meu trabalho avançar dez anos no tempo. Por isso te abandono, Zé Ninguém. Não mais estarei ao teu serviço, nem é minha intenção condenar-me a morte lenta por teu amor. Não poderás seguir-me na trajetória que me impus. Ficarias aterrorizado se tivesses alguma idéia do que te espera no futuro. Porque a partir da agora és tu quem governa o futuro e as minhas conquistas solitárias farão parte do teu futuro. Mas não te quero como companheiro de viagem – como companheiro, só és inofensivo à mesa de um bar, nunca para onde eu vou.



“Fora com ele! Este homem ridiculariza a civilização que eu, o homem comum, ajudei a construir. Sou um homem livre numa democracia livre!”



Tu és o nada, Zé Ninguém, o nada absoluto. Não foste tu quem construiu esta civilização, mas sim um punhado dos teus melhores mestres. Quando te encontras integrado num processo de construção não fazes a menor idéia de que construção se trata. E quando alguém te solicita para que tomes a responsabilidade da construção chamas-lhe “traidor do proletariado” e corres a acolher-te junto do Pai de Todos os Proletários, que não te solicita.



Nem és livre, Zé Ninguém. Não fazes a menor idéia do que é viver em liberdade. Não foste tu quem disseminou a peste emocional na Europa e na América? Pensa em Wilson.



“Ouçam, mas este tipo acusa-me a mim, um Zé Ninguém! Que poder tenho eu para influenciar o presidente dos Estados Unidos? Eu cumpro o meu dever, faço o que me manda o meu patrão e não me meto em altas políticas”.



E quando arrastas milhares de homens, mulheres e crianças para as câmaras de gás, mais não fazes que cumprir o que te mandam, não é assim, Zé Ninguém? És tão inofensivo que nem sequer te dás conta do que se passa. És um pobre diabo que nada tem a dizer, sem opinião própria; quem és tu para te meteres na política? Eu sei, já te ouvi a mesma tirada com freqüência. Mas deixa-me perguntar-te: porque não cumpres o teu dever quando alguém te afirma que és responsável pelo teu trabalho, ou que não deves bater nas crianças, ou seguir ditadores? Onde está então o teu sentido do dever, a tua inócua obediência? Não, Zé Ninguém, tu não ouves quando fala a verdade, só podes ouvir o ruído sem sentido. E gritas então “Viva!”. És covarde e cruel, sem o mínimo senso do teu verdadeiro dever, o de ser humano e preservar a tua humanidade. És uma medíocre imitação do sábio e extraordinária a da do ladrão. Os teus filmes, programas de rádio e histórias de quadradinhos abundam em toda a espécie de crimes. Terás de arrastar ainda durante séculos a tua mediocridade antes de poderes tornar-te senhor de ti próprio. Se me separo de ti é a fim de melhor poder servir o teu futuro. Porque à distância não podes atingir-me e tens mais respeito pelo meu trabalho. Desprezas o que te está perto. Colocas os teus lideres em pedestais porque doutra forma não poderias “fazer de conta” que os respeitas. É, por isso que, desde que a história é história, os grandes homens sempre souberam manter-te à distância.



“O tipo é megalomaníaco! Está completamente doido!”



Eu conheço a facilidade com que diagnosticas de loucura toda a verdade que te desagrada, Zé Ninguém. E como te consideras o espécime acabado do homo normalis. Duma maneira ou de outra, condenas à reclusão os loucos, e são as pessoas normais que governam o mundo. A quem pedir contas, então, de toda essa miséria? A ti, nunca, tu apenas cumpres o teu dever, e quem és tu para poderes emitir uma opinião própria? Eu sei, não precisas de o repetir. Não és tu que contas, Zé Ninguém. Mas quando penso nos teus filhos recém-nascidos, no modo como os torturas a fim de os transformar em criaturas “normais” à tua imagem e semelhança, sou tentado a aproximar-me de ti novamente a fim de impedir os teus crimes. Mas sei também que tiveste o cuidado de proteger-te a ti próprio através de uma instituição como o Conselho de Educação. Gostaria de levar-te a dar uma volta comigo por este mundo, Zé Ninguém, e mostrar-te o que és e o que foste, no presente e no passado, em Viena, em Londres, em Berlim, como “representante do poder popular”, como membro de algum credo. Poderias encontrar-te em toda a parte e reconhecer-te, quer fosses francês, alemão ou hotentote, se tivesses a coragem de olhar para ti próprio.



“Ouçam-no! Agora insulta-me, ofende a minha honra! Ridiculariza a minha missão!”



Não é isso o que tento fazer, Zé Ninguém. Muita alegria me darias se me contradissesses, se me desses provas de que és capaz de olhar para ti e reconhecer-te.



É, necessário que dês provas, o mesmo tipo de provas que se exigem dum construtor civil: a casa tem de ser visível e habitável. Não tem o direito de berrar que alguém lhe lesa a honra quando afirma que ele apenas discursa sobre a “missão do construtor civil” sem realmente construir o que quer que seja. Do mesmo modo te exijo que proves que és o suporte do futuro da humanidade. Deixa de usar covardemente os chavões da “honra da nação” ou do “proletariado” para te esconderes – para mim, já tens à mostra demasiado do que realmente és.



Tal como ia dizendo, aqui te deixo. A reflexão de muitos anos e muitas noites sem dormir levaram-me à necessidade de o fazer. Os teus futuros chefes de todos os proletários são bem menos complicados. Um dia são teus lideres, amanhã serão capazes de fazer o que quer que seja para continuarem a desempenhar qualquer cargo. Mudam de convicções como quem muda de camisa. Eu não. Continuo a estimar-te e a preocupar-me com o teu destino. Mas uma vez que és incapaz de respeitar quem quer que seja que te esteja perto, é necessário criar entre nós certa distância. Serão os teus bisnetos os herdeiros do meu trabalho, e por eles esperarei a fim de poder gozar os meus frutos, tal como durante trinta anos o esperei de ti. Tu, no entanto, continuaste berrando: “Abaixo o capitalismo!”, ou “Abaixo a Constituição americana!”.



Vem comigo, Zé Ninguém. Vou mostrar-te alguns quadros da tua vida quotidiana. Não fujas. Serão odiosos, mas salutares, e o todo não é tão terrivelmente perigoso. Há cem anos, aprendeste a papaguear os físicos que construíram máquinas e te diziam que o espírito não existe. Surgiu então um grande homem que te demonstrou o teu próprio funcionamento psíquico, só que desconhecia a conexão entre o teu espírito e o teu corpo. Disseste então: “Ridículo! Psicanálise! Charlatanices! Pode-se analisar a urina, não se pode analisar a psique humana”. Disseste-o porque em matéria de medicina pouco mais sabias para além da análise de urinas. A luta pelo espírito durou aproximadamente quarenta anos. Conheço bem os meandros dessa luta, porque a partilhei em teu nome. Descobriste então que se pode ganhar muito dinheiro com as perturbações da mente humana. Basta fazer com que um doente venha diariamente durante uma hora ao longo de alguns anos e que essa hora a pague caro.



Então, e só então, começaste a acreditar na existência do espírito, enquanto, concomitantemente; se ia consolidando o conhecimento do teu corpo. Descobri que o teu espírito é uma função da tua energia vital, isto é, por outras palavras, que existe uma unidade entre o corpo e o espírito. Esta foi a linha de reflexão e investigação que segui, chegando à conclusão de que expandes essa energia vital sempre que te sentes bem e afetivamente seguro e que a retrais para dentro do teu próprio corpo sempre que tens medo. Durante quinze anos mantiveste-te silencioso quanto ao conteúdo destas conclusões. O que não me impediu de prosseguir a mesma via e de descobrir que esta energia vital, à qual dei o nome de “orgone”, se encontra também presente na atmosfera, fora do teu corpo. Consegui torná-la visível na escuridão e montar aparelhagem capaz de a amplificar e tornar luminosa. Enquanto tu jogavas às cartas, ou te entretinhas a torturar a tua mulher e os teus filhos, eu permaneci várias horas por dia, durante dois longos anos, na minha câmara escura, procurando certificar-me de que havia realmente isolado a tua energia vital. Gradualmente, aprendi a demonstrá-lo a outros e a constatar que lhes era possível verificar o mesmo que eu.



Mas tu, na tua qualidade de médico crente de que o psíquico é apenas uma secreção das glândulas endócrinas, apressas-te a afirmar a um dos meus doentes recuperados que o meu sucesso terapêutico foi apenas a resultado de “sugestão”. Ou, sofrendo como sofres de dúvidas obsessivas e fobias relacionadas com a obscuridade, afirmas em relação aos fenômenos que acabas de observar que também eles se devem à “sugestão” ou que te sentes como que saído de uma sessão espírita. És assim, Zé Ninguém. Em 1945 utilizas as mesmas reflexões asnáticas sobre a “alma” que em 1922 utilizavas para lhe negar a existência. Continuas sendo o mesmo Zé Ninguém. Em 1984 continuarás de ânimo leve a ganhar dinheiro com o orgone e, igualmente de ânimo leve, a difamar, a abafar no silêncio e a tentar destruir qualquer outra verdade, tal como o fizeste com a descoberta do psíquico e da energia cósmica. E permanecerás o mesmo Zé Ninguém cheio de “espírito crítico”, berrando “Viva!” a este e àquele. Lembras-te do que disseste da descoberta de que a Terra não é imóvel, mas gira sobre si própria e se move no espaço? Não tiveste outra resposta senão a graça estúpida de que, a partir de então, os copos passariam a tombar das bandejas dos criados. Foi há alguns séculos, de modo que já esqueceste, Zé Ninguém. Tudo o que sabes de Newton é “que lhe caiu uma maçã na cabeça” e tudo o que sabes de Rousseau é que preconizava o “retorno à natureza”. A única coisa que aprendeste com Darwin foi a “sobrevivência dos mais aptos”, não as tuas origens como primata. Do Fausto de Goethe, que tanto te agrada citar, entendeste tanto como um gato entende de matemática. És estúpido e vaidoso, vazio e macaqueante, Zé Ninguém. Sempre encontras forma de desvirtuar o essencial e assimilar o errôneo. O teu Napoleão, esse homenzinho de galões doirados, que nada nos legou senão o cumprimento obrigatório do serviço militar, surge nas tuas livrarias todo encadernado a doirados, enquanto o meu Kepler, que teve a intuição da tua origem cósmica, não se pode encontrar em nenhuma livraria. É por isso que continuas no lameiro, Zé Ninguém. É, por isso, que me vejo obrigado a contradizer-te cada vez que pareces estar convencido de que eu trabalhei e lutei durante vinte anos, que sacrifiquei enormes quantias, apenas para te “sugerir” a existência da energia cósmica do orgone. Não, Zé Ninguém, aprendi realmente a sanear o mal que te aflige, coisa que não podes crer. Bem te ouvi afirmar na Noruega que “quem quer que seja que gaste uma tal quantia em meras experiências deve ser completamente louco”. Claro! Julgas por ti próprio. Só te é possível tirar, dar nunca, por isso te é inconcebível que quem quer que seja possa ter alegria na dádiva, tal como te é inconcebível a hipótese de estar com uma mulher sem que imediatamente se te ponha a questão de a “comer”.



Talvez me fosse possível respeitar-te se fosses ao menos grande quando “roubas” felicidade. Mas até nisso és medíocre. Não és ignorante, mas como o teu estado psíquico habitual é de prisão de ventre, és incapaz de criar – roubas o osso e rastejas para o primeiro buraco onde possas roê-lo em paz, tal como Freud um dia te disse. Atracas-te ao primeiro indivíduo generoso que encontras e secá-lo até à medula no que tenha para dar-te. E é a ele que chamas idiota. Devoras-lhe o que possa dar-te de sabedoria, de alegria, de grandeza, mas és incapaz de digerir o que dele te venha. Sai-te nas fezes, e o fedor que exala é pavoroso. Ou, para salvaguardares a tua dignidade após o que é realmente uma violação e um furto, chamas-lhe alienado, charlatão ou perverso sexual.



Ora aí temos: “Perverso sexual”. Lembras-te, Zé Ninguém (eras tu presidente de uma sociedade científica), de como te foi necessário espalhar o boato de que eu encorajava os meus filhos a assistirem ao ato sexual? Passou-se isto pouco depois de eu ter publicado o meu primeiro artigo sobre os direitas da criança à atividade genital. De uma outra vez (eras presidente temporário de uma espécie de associação cultural de Berlim) fizeste correr que eu saía de carro para o campo com adolescentes a fim de as seduzir. Nunca seduzi adolescentes, Zé Ninguém. A obscenidade da fantasia é tua, não minha. Amo a minha mulher e a minha filha – é a tua incapacidade de amares as tuas que te leva ao desejo inconfessável de andar pelos bosques seduzindo rapariguinhas.



E tu, rapariguinha, não é verdade que sonhas com o “másculo” ídolo cinematográfico? Não és tu que levas a sua fotografia contigo para a cama? Que fazes o jogo da aproximação e da sedução, afirmando-te como maior de 18 anos? E não és tu ainda que o acusas em tribunal de crime de violação? E imaculada de culpas ou condenada, serão as tuas avós que continuarão a beijar-lhe as mãos.



Querias ir para a cama com ele, mas foste incapaz de assumir a responsabilidade. Por isso o acusas, pobre menina violada. Ou tu, mulher madura, também dita violada, que conheceste maior prazer na relação sexual com o teu motorista que com o teu marido. Não foste tu que o seduziste por lhe sentires mais sã a sua sexualidade de homem de cor? E não foi então que o acusaste de crime, a ele que não possuía apoios, vitima da sua condição de “raça inferior”? Evidentemente que não, tu és pura e branca, os teus antepassados vieram no May-flower, és “Filha Desta ou Daquela Revolução”, Nortista ou Sulista, cujo avô enriqueceu à custa da escravatura negra. Como és inocente, pura, branca, como é inexistente o teu desejo do Negro, pobre criatura. Miserável covarde, descendente de uma raça de caçadores de escravos, descendente de um Cortês que atraiu milhares de astecas confiantes à emboscada onde os exterminou. Desgraçadas filhas desta ou daquela revolução. Mas qual é a vossa concepção da emancipação? Que fizeram do esforço dos revolucionários americanos, dos esforços de Lincoln, que vos libertou os escravos para serem entregues agora ao “mercado livre da competição”? Olhem para o espelho, filhas de revoluções – vejam como são idênticas às “Filhas da Revolução Russa”, meninas inocentes e castas.



Se ao menos uma vez na vida vos houvesse sido possível dar amor a um homem, quantas vidas de negros, de judeus, de trabalhadores, poderiam ter sido salvas. Tal como esmagais a vida de vossos filhos, assim vos aproximais dos negros para matar em vós próprias o pouco que resta do impulso de amar, a fantasia pornográfica e frívola da luxúria. Como eu vos conheço, filhas e mulheres da alta finança, e a toda a vileza contida nos vossos sexos mortos. Não, filhas desta ou daquela revolução, não tenho a menor intenção de me tornar um L.L.D. ou comissário, cargo que deixo de bom grado às rígidas criaturas em uniforme que vos comandam. Guardo o meu amor para os pássaros e esquilos, os animais livres que tão perto estão dos negros, não os negros de Harlem, com os seus colarinhos engomados e fatiotas rígidas, mas os negros integrados nas suas tribos na floresta. Não as rotundas mulheres negras de argolas nas orelhas, cujo prazer negado lhes arredonda os flancos até ao absurdo, mas os corpos esbeltos e suaves das raparigas dos mares do Sul, em cujas carnes se compraz a vileza dos homens deste ou daquele exército, raparigas que desconhecem que o seu amor puro é “usado” como numa relação de bordel.



Não, menina, tu desejas a vida que não entendeu ainda até que ponto é explorada e desprezada. Só que os teus dias estão contados. A tua versão “virgem da raça germânica” foi extinta - ainda subsistes como “virgem da classe proletária” na Rússia, ou como “filha da Revolução Universal”. Mas daqui a uns quinhentos, a uns mil anos, quando rapazes e raparigas saudáveis puderem enfim proteger o amor e nele achar alegria, nada mais restará de ti do que a memória do teu ridículo.



Não foste tu que recusaste ouvir a maravilhosa voz vibrante de vida de Marian Anderson, tu, mulherzinha cancerosa? O seu nome permanecerá na música dos séculos, quando já nada restar de ti. Pergunto a mim próprio se também a ela lhe é possível pensar em termos de séculos, ou se faz parte do número dos que proíbem o amor de seus filhos. Ignoro-o – os verdadeiros vivos ora correm ora vagueiam. A própria vida os satisfaz – a verdadeira vida que tu desconheces, mulherzinha putrefata.



Inventaste o mito de que representas “A SOCIEDADE”, mito que o teu Zé Ninguém se apressou a ratificar de alma e coração. Não o és. É verdade que continuas a anunciar quotidianamente no teu jornal judeu ou cristão que e quando se vai a tua filha deitar com um homem, mas qual é o indivíduo com o mínimo de senso a quem tal coisa interessa? “A Sociedade” sou eu e o carpinteiro e o jardineiro e o professor e o médico e o operário. Isto, e não tu, criatura rígida, dissimulando a tua putrefação. Tu não és a vida, mas sim a sua distorção. Mas entendo porque te retiraste para a tua fortaleza de bens e poder - que outra coisa poderias fazer face à mesquinhez dos carpinteiros, jardineiros, médicos, professores e operários? Sendo o horror que é, a tua retirada justifica-se. Mas a mesquinhez e a vileza estão-te nos ossos, na tua prisão de ventre, no teu reumatismo, na tua dissimulação, na tua negação da vida. És desgraçada, mulher, porque os teus filhos se destroem, as tuas filhas se prostituem, os teus homens secam. e a tua vida se putrefaz, e com ela os teus tecidos. E não me inventes histórias, Filha da Revolução; eu já te vi completamente nua.



És covarde e sempre o foste. Tiveste a felicidade nas mãos e deixaste-a fugir. Pariste presidentes e infectaste-os com a tua vileza. Deixam-se fotografar a pendurar medalhas nas pessoas em perpétuo sorriso, e não se atrevem a nomear as coisas pelo seu nome. Tiveste o mundo nas tuas mãos e lançaste-lhe em Hiroxima e Nagasaqui as tuas bombas atômicas – isto é, o teu filho fê-lo por ti. Cavaste o teu túmulo por tuas próprias mãos, mulherzinha cancerosa. Com uma, só destas bombas, aniquilaste para sempre a tua classe e toda a tua casta. Porque não tiveste sequer a humanidade de avisar os homens, as mulheres e as crianças de Hiroxima e Nagasaqui. Nem um gesto de grandeza, e por esse gesto não cumprido toda a tua espécie desaparecerá como um seixo largado no oceano. Nem importa o que possas ter a dizer ou penses, pobre parideira de tantos mentecaptos – daqui a; quinhentos anos serás motivo apenas de pasmo e gáudio. Que o não sejas já é apenas parcela da miséria do mundo. Sei o que vais dizer, criatura. Todas as aparências são a teu favor; “a defesa do país” etc. Usou-se o mesmo argumento outrora na velha Áustria. Nunca ouviste um cocheiro vienense berrar: “Viva o meu Kaiser!” Pois é a mesma música. Não, desgraçada, de ti não tenho medo -não há nada que possas fazer-me. É verdade que o teu genro é vice-presidente da Câmara ou que o teu sobrinho é alto funcionário do Ministério das Finanças. Mais chazinho, menos chazinho e vais-lhes dizendo umas coisas a meu respeito. Ao indivíduo que quer passar a presidente da Câmara ou a diretor-geral não há-de deixar de convir a utilização duma vítima em nome da “Lei e da Ordem”. Bem sei como se mexem os cordelinhos, mas não há-de ser isso que te safa – a minha verdade tem mais força do que tu.



“O homem é um obcecado, um fanático! Será que eu não tenho nenhuma função na sociedade?”



Apenas te demonstrei que és medíocre e vil, Zé Ninguém, tu e a tua mulher - ainda nem sequer mencionei a tua utilidade e importância. Ou julgas que arriscava o pescoço numa conversa destas se não te achasse importante? Toda a tua mesquinhez e vileza é bem mais grave se vista à luz da tua imensa responsabilidade e importância. Afirma-se habitualmente que és estúpido – ora, eu sei-te inteligente, mas covarde. Afirmam-te que és a escória da humanidade – eu diria que és a sementeira. Diz-se ainda que a cultura carece da experiência de escravos. Eu afirmo que nenhuma cultura pode ser edificada sobre qualquer forma de escravatura. A monstruosidade deste nosso século tornou ridícula toda e qualquer evolução cultural a partir de Platão. A cultura humana ainda nem sequer existe, Zé Ninguém! Começamos agora a entender a patológica degenerescência do animal humano. Esta “conversa com o Zé Ninguém” ou qualquer outro escrito válido que possa ser publicado hoje em dia estará para a cultura de daqui a mil ou cinco mil anos como a primeira roda de há milênios está para as locomotivas diesel dos nossos dias.



Pensas sempre a curto prazo, Zé Ninguém, o teu tempo medeia de uma refeição a outra. Terás de aprender a memória em termos de séculos, e a perspectiva do futuro em termos de milênios. Terás de aprendê-la em termos da verdadeira vida, em termos do teu desenvolvimento desde o primeiro floco plasmático até ao animal humano, capaz de caminhar ereto, mas incapaz ainda de pensar com justeza. Porque a tua memória não retém acontecimentos de há dez ou vinte anos, continuas repetindo as mesmas asneiras de há dois milênios. E mais ainda: agarras-te a elas – à tua “raça”, “classe”, “nação”, aos teus ritos religiosos compulsivos, à supressão do amor, como um piolho se aferra à pele. Nem te atreves a ver até que ponto te encontras atolado na tua miséria. De vez em quando, pões a cabeça pra fora e berras “Viva!”. O coaxar duma rã no charco tem pelo menos mais sentido.



“Porque não me tiras então do lameiro? Porque não participas nas minhas reuniões do partido, nos meus parlamentos, nas minhas conferências diplomáticas? És um traidor! Dizes que lutaste por mim, que sofreste e que te sacrificaste, e agora insultas-me!”



Eu não posso arrancar-te do lameiro. Só tu podes fazê-lo. Nunca participei dos teus círculos e conferências porque a regra de ouro consiste em “calar o essencial”, “falar apenas do acessório”. É verdade que durante vinte e cinco anos lutei por ti, te sacrifiquei a minha segurança profissional e a paz da minha família; financiei organizações tuas, participei em marchas e manifestações de protesto. É verdade que, na minha qualidade de médico, te dei milhares de horas, sem receber qualquer compensação – errei de país em país por tua causa, substituindo-te muitas vezes quando a voz se te apagava no calor dos brados. Fui literalmente capaz de arriscar a vida por ti, no tempo da grande praga política, quando te transportava clandestinamente a melhor abrigo, sob pena de morte se descoberto; ajudei a proteger os teus filhos das investidas da policia contra as suas manifestações públicas - e gastei tudo quanto me restava na criação de instituições de saúde mental onde fosse possível achar orientação e apoio. Mas tu nada tiveste para me dar em troca. Querias ser salvo, mas nem uma só vez no decorrer destes trinta monstruosos anos de peste emocional foste capaz de gerar uma única idéia fecunda. E uma vez finda a segunda guerra mundial encontras-te exatamente no mesmo ponto onde estavas quando ela começou; talvez uns milímetros mais à “esquerda” que à “direita”, mas para frente, nada! Malbarataste as aquisições da luta francesa pela emancipação, e até a extraordinária emancipação russa conseguiste transformar em aborto aos olhos do mundo. O teu falhanço, que foi, e que só espíritos verdadeiramente grandes e isolados podem entender sem cólera, sem desprezo, foi causa do desespero em todo o mundo de todos aqueles dispostos a sacrificar-te tudo. Durante todos esses anos de horror, essa sangrenta metade de século, nem uma só palavra se te ouviu que não fosse banal, nem uma só palavra de bálsamo ou sequer de bom senso.



No entanto, não desanimei de todo, pois aprendi a conhecer-te ainda melhor e mais profundamente. Entendi que não te era possível pensar ou agir de outro modo. Reconheci então o medo mortal que te suscita toda a forma de vida, medo que sempre ameaça a continuidade de tudo o que tentes de genuíno e certo. Tu não podes entender que o conhecimento seja fonte de esperança. A esperança, para ti, sempre terá de vir dos outros, nunca de ti próprio. É por isso que, face à minha atitude perante o colapso do teu mundo, me chamas “otimista”, Zé Ninguém. E queres saber porque sou otimista e crente no futuro? Ouve:



Enquanto fui ficando agarrado a ti, tal como foste e continuas sendo, fui levando pontapés, vítima da tua curteza de vistas. Vez após vez esqueci as ofensas que se seguiam ao apoio que te dava, mil vezes fui forçado a ter em conta a tua insanidade. Até que abri os o lhos e te vi - o primeiro movimento foi de desprezo e cólera, mas aprendi gradualmente a substitui-los pela compreensão do mal que te afeta. Não mais senti raiva perante o colapso da tua primeira tentativa de possuíres a terra. Comecei antes a entender que esse fora o único resultado possível após milhares de anos de repressão da verdadeira vida.



Enunciei a lei funcional do que vive, Zé Ninguém, ao tempo em que andavas por ai espalhando a minha insanidade. Eras então um psiquiatra insignificante, com uma certa experiência de movimentos de juventude e com altas probabilidades de uma futura afecção cardíaca, dado que eras impotente – morreste, pois, anos mais tarde, literalmente de coração partido, pois não é impunentemente que se rouba e difama quem quer que seja; na desonestidade é a própria vida que está em causa se um mínimo de pureza ainda sobrevive escondido em ti. E tu possuías essa ínfima centelha, Zé Ninguém. Quando te passaste de amigo para inimigo, pensaste que eu estava “pronto” e deste-me o pontapé final, porque sabias que eu tinha razão e que não te era possível seguir-me. Quando anos mais tarde eu voltei à liça, qual teimoso “sempre-em-pé”,. e agora mais forte, mais exato e determinado que nunca, apanhaste o susto que te foi mortal. Tiveste, porém, tempo de verificar quais os abismos que fui forçado a transpor, o terreno instável que havias preparado para a minha queda. Porque proclamaste como teus, nas tuas tão prudentes organizações, conhecimentos a que só eu te dera acesso? Afirmo-te que a gente honesta que te rodeava o sabia; sei-o porque mo disseram. A tática, a tua, Zé Ninguém, é a via mais rápida para a morte prematura.



E porque a vida a teu lado é demasiado arriscada, porque na tua proximidade é impossível servir a verdade sem ser esfaqueado pelas costas e enlameado no rosto, optei pela separação. E repito-o não a separação do teu futuro, mas da tua proximidade. Não a da tua humanidade, mas a da tua desumanidade e mesquinhez.



Mantenho-me capaz de sacrifício em nome da verdadeira vida - não por ti, Zé Ninguém. Só há bem pouco me dei conta do tremendo erro no qual laborei durante vinte e cinco anos: dediquei-me à tua pessoa e à tua forma de vida, crente de que tu eras a vida, a inteireza simples, o futuro e a esperança. Tal como eu, outros foram os que, desprevenidos e de boa fé, em ti procuraram achar o sentido da vida. Nem um só sobreviveu. Sendo assim, decidi-me a não me deixar morrer vitimado pela tua estreiteza de vistas e tua mesquinhez. Porque creio na importância do que faço. Descobri a vida, Zé Ninguém - mas já não cometo o grave erro de confundir-te com o que de vivo pude achar em mim próprio e em ti procurei.



A minha contribuição real para a segurança do que é deveras vivo e do teu futuro só será possível se puder, de forma bem clara e nítida, fazer a separação entre a vida, as suas funções e, características e a tua forma de vida. Sei que é necessária coragem para entrar em conflito contigo – mas vou continuar a trabalhar pelo teu futuro, porque me inspiras compaixão e porque não me move o desejo de ser içado à posição de “grande” líder medíocre a que aspiram os teus miseráveis chefes. Há já algum tempo que a vida em ti começa a dar sinais de rebeldia perante a distorção que lhe é imposta. Esta é a hora primeira de um futuro maior, do fim de toda a forma de mediocridade. Porque entretanto o modo como age a peste emocional se foi tornando demasiado óbvio. Acusa a Polônia das intenções de agressão militar, depois de tomada a decisão de agredir a Polônia. Acusa o rival da intenção de crime depois de decidir eliminá-lo. Acusa de pornografia a vida sexual sã, "que tem em mente intenções pornográficas. Já te topamos, Zé Ninguém; vais-te tornando transparente sob a tua fachada de desgraça e submissão. O que te é pedido é que determines o rumo do mundo com o teu trabalho e a tua realização - substituir uma forma de tirania por outra é que nunca. O que se te exige é que te submetas às leis da vida tal como quererias que os outros fizessem; que te modifiques à medida que os vais criticando. Cada vez é mais óbvia a tua predisposição para a tagarelice a tua avidez, a tua irresponsabilidade - o mal de ti que conspurca toda a beleza da Terra. Sei que não te agrada o que ouves, que preferes berrar “Viva!”, que és bem capaz de parir o futuro do proletariado do IV Reich. Mas não é menor a minha convicção de que as coisas te vão sendo mais difíceis hoje que no passado – embora sejas ainda brutal sob a tua máscara de sociabilidade e gentileza, Zé Ninguém. Não acreditas? Deixa então que te refresque a memória:



Lembras-te da magnífica tarde em que vieste, como lenhador que eras, pedir trabalho à minha cabana na montanha? Depois de farejar-te, o meu cachorro saltou-te aos joelhos. Viste que era cão de boa raça e disseste então: “Devia amarrá-lo para se fazer bravo. O cão é manso de mais”. Ao que eu te respondi: “Eu não quero ter uma fera amarrada com correntes. Não gosto de cães raivosos.” Ali, lenhador, tenho bem mais inimigos no mundo do que tu, mas continuo a preferir o meu majestoso cão, meigo com toda a gente.



Lembras-te do domingo chuvoso em que a angústia perante o fenômeno da tua rigidez biológica me levou a sair de casa, largando o trabalho, para me enfiar num dos teus bares? Sentei-me a uma mesa e pedi um uísque (não, Zé Ninguém, não sou alcoólico, embora goste de beber de vez em quando). Ia, pois, bebendo o meu copo quando te ouvi, no teu paleio de recém-desmobilizado, descrever os Japoneses como “macacos horrendos”. E foi então que afirmaste, com a expressão facial que eu tão bem conheço do meu trabalho terapêutica: “Vocês sabem o que a malta devia fazer com os Japoneses da costa ocidental? Estrangulá-los todos, um por um, mas devagar, lentamente, apertar-lhes o garrote a pouco e pouco, assim...”, e ias fazendo o gesto com as mãos, Zé Ninguém. O criado apoiava-te, fazia que sim em admiração perante a tua heróica masculinidade. Já alguma vez tiveste um bebê japonês recém-nascido nos braços, patriótico de merda? Durante muitas décadas continuarás ainda a estrangular espiões japoneses, aviadores americanos, camponeses russos, oficiais alemães, anarquistas ingleses e comunistas gregos – hás-de fuzilá-los, condená-los à cadeira elétrica, às câmaras de gás -, o que em nada irá alterar a tua, prisão de ventre generalizada, a tua incapacidade de amar, o teu reumatismo ou a tua doença mental. Não serão os crimes que possas cometer que irão arrancar-te ao lameiro. Olha para ti, Zé Ninguém. É a tua única esperança. Lembras-te, Maria Ninguém, do dia em que vieste ao meu consultório espumando de raiva contra o homem que se tinha separado de ti? Durante anos e anos tiveste-o debaixo de mão, a ele e à tua mãe, tias, sobrinhos e demais família, enquanto o desgraçado se ia encolhendo cada vez mais, dando-te de comer a ti e a todos os outros. Até que num último esforço para manter vivo em si o que a vida possa ter de sentido te deu com os pés e desandou; só que como não se sentia suficientemente forte para poder libertar-se isolado do teu jugo, me veio pedir auxílio. Pagou-te de boa vontade a pensão que lhe foi imposta pela lei, três quartos do total dos seus ganhos – o preço do seu amor pela liberdade. Porque este homem era deveras um grande artista, e a verdadeira arte, tal tomo a ciência genuína, não sobrevive a quaisquer algemas. Tu, porém, na tua raiva cega, o que querias era que fosse ele a sustentar-te totalmente, apesar de teres a tua própria profissão – e sabias que eu o ajudaria a eximir-se a obrigações sem justificação possível. Enfureceste-te. Ameaçaste-me com a polícia porque, segundo dizias, era eu que lhe tirava o que tinha, aproveitando-me da sua necessidade de apoio. Por outras palavras, tu, como mulherzinha medíocre que és, acusaste-me das tuas próprias intenções. Nunca te ocorreu tentar progredir na tua situação profissional, porque isso teria significado a tua independência do homem por quem, há já tantos anos, nada mais sentias do que ódio. Achas que é assim que se pode construir um mundo novo?, tu que te apresentaste como ligada a certos meios socialistas que “saberiam tudo a meu respeito”? Não vês até que ponto o teu comportamento é típico, que há milhões como tu dispostos a destroçar a Terra? Bem sei que és “fraca” e “só”, “dependente da tua mãe”, “desamparada”, que te odeias a ti própria, que não te suportas e estás desesperada. E é por isso que destróis a vida dó homem com quem viveste, Maria Ninguém, e a tua vida segue o rumo medíocre da maior parte das vidas. E sei ainda que os juizes e advogados estão do teu lado porque não possuem outra resposta para a tua desgraça.



Revejo-te a ti também, secretariazinha dum tribunal de província, tomando notas sobre o meu passado e o meu presente, sobre as minhas opiniões acerca do sentido da propriedade, acerca da Rússia e da democracia. Perguntam-me qual a minha posição social. Respondo que sou membro honorário de três sociedades científicas, entre as quais a Sociedade Internacional de Plasmogenia, o que parece impressionar a audiência. Na sessão seguinte, o oficial de diligências diz-me: “Há aqui uma coisa estranha – que o senhor é membro da Sociedade Internacional de Poligamia. Isto está certo?” E ambos nos rimos do teu engano, criaturinha medíocre. Percebes agora por que motivo as pessoas me difamam? Na base estão as tuas fantasias, não a minha forma de viver. É ou não verdade que tudo o que recordas de Rousseau é o seu apelo de “retorno à natureza”, o fato de que pouca atenção deu a seus filhos e que os colocou num orfanato? A tua natureza é perversa, porque apenas vês e ouves o que é desagradável, e nunca o que possa ser bom ou ter beleza.



“Ouçam! Eu vi-o correr as persianas à uma da manhã. O que é que vocês pensam que o tipo estava a fazer? E durante o dia tem-nas sempre abertas. Há! Ali há qualquer coisa!”



De pouco ou nada te servirá continuar a usar esses métodos contra a verdade. Nós já os conhecemos. Não são as minhas persianas que te preocupam, o que te interessa é ocultar a minha verdade. Tu queres continuar a ser difamador e delator, sempre que o teu vizinho se não acomode ao teu modo de vida, ou porque é bondoso, ou livre, ou simplesmente porque trabalha e pouco se incomoda contigo – por isso desejas que o prendam. És demasiado intrometido, Zé Ninguém, metes o nariz onde não és chamado para em seguida difamares, as costas quentes de saberes que a polícia não divulga a identidade dos seus informadores.



“Ouçam, contribuintes! E é isto um professor de Filosofia que uma das grandes universidades da vossa cidade quer contratar para ensinar a nossa juventude! Fora com ele!”



E a tua não menos preclara esposa e contribuinte põe a circular um abaixo-assinado contra o professor em causa, que, evidentemente, perde assim o lugar. Tu, virtuosíssima esposa e contribuinte, honorável parideira de patriotas, assim consegues ser mais poderosa que quatro mil anos de filosofia natural. Só que começamos a entender-te e, mais tarde ou mais cedo, a tua hora há-de soar.



“Ouçam bem todos aqueles que se interessam pela moral pública. Na nossa esquina mora uma mulher com a filha. E a filha recebe o namorado à noite. Vamos levá-la a tribunal, acusá-la de manter uma casa de passe! Polícia! Queremos a proteção dos costumes!”



E a mãe em causa é condenada, porque tu espias o que se passa na cama dos outros. Demasiado claramente o expressas, demasiado claras são as motivações dos teus apelos à “moral e à ordem”. Ou não é verdade que tentas beliscar o rabo a todas as empregadas, Zé Ninguém moralista? SIM, DESEJAMOS PARA OS NOSSOS FILHOS A EXPRESSÃO LIVRE E ABERTAMENTE ALEGRE DO SEU AMOR E QUE NÃO TENHAM QUE VIVÊ-LO CLANDESTINAMENTE, EM BECOS ESCUROS, NA OBSCURIDADE DE ENTRE PORTAS. Queremos respeitar os pais corajosos e honestos que entendem e protegem o amor adolescente dos seus filhos e filhas. Tais pais e mães são o germe das gerações futuras, cujo corpo e sentidos serão sãos, libertos enfim da obscenidade das tuas fantasias, Zé Ninguém impotente do século XX.



“Ouçam a última! Houve um rapaz que foi ter com ele para se tratar e teve de sair correndo com as calças na mão, porque, o tipo é homossexual!”



Não sentes o fedor do teu hálito, Zé Ninguém, quando espalhas por aí esta “verdade”? Não lhe reconheces a origem no teu monte de esterco, na tua prisão de ventre e lascívia? Eu nunca tive desejos homossexuais, tal como tu; nunca tentei seduzir rapariguinhas, nunca violei uma mulher, nunca sofri de prisão de ventre; nunca roubei afeto, como tu; só me liguei a mulheres que me queriam bem e a quem eu queria; nunca me exibi publicamente, como tu fazes - nem me deleito como tu em fantasias obscenas.



“Mas ouçam esta: o tipo atreveu-se de tal forma com a secretária que a rapariga teve que fugir de casa. Vivia com ela de persianas sempre corridas e a luz acesa até às três da manhã!”



E De la Mettrie era um sensualão que morreu atochado de bolos, segundo a tua versão; e o príncipe Rodolfo vivia em mancebia; e a Srª Roosevelt nunca foi muito certa da cabeça, e o reitor da Universidade X encontrou a mulher em flagrante delito de adultério, e o professor desta ou daquela escola de província tem uma amante. Não és tu que.o afirmas, Zé Ninguém? Não és tu que espalhas tais “ditos”? Tu, miserável cidadão do mundo, que durante. milênios assim malbaratas a tua própria vida, cavando tu mesmo a fossa onde te manténs.



“Agarrem-no! O tipo é um espião alemão, ou talvez russo, ou mesmo da Islândia! Eu vi-o às três da tarde na rua 86 de Nova Iorque e ainda para mais com uma mulher!”



Sabes qual é o aspecto dum piolho quando exposto a um foco de luz muito intenso? Bem me parecia que não. Um dia virá em que a lei usará da sua força contra o piolho humano – leis capazes de proteger a verdade e o amor. Tal como hoje se enviam para reformatórios adolescentes carecidos de afeto, haverá um dia instituições onde isolar os que enlameiam a reputação dos outros. Surgirão novos juízes e delegados de justiça, que não mais administrarão em formalismo e impostura, mas sim em verdade e tolerância. Leis novas hão-de erigir-se em proteção da vida, leis a que terás de obedecer, por muito que isso te pese. Sei, porém, que durante três, cinco ou dez séculos teremos de suportar-te como o portador por excelência da peste emocional, o riúcleo da difamação, da intriga, da inquisição abusiva. Mas acabarás por sucumbir à tua própria pureza; hoje enterrada tão profunda e inacessivelmente no teu ser.



Posso contudo asseverar-te que nenhum Kaiser, nenhum Czar ou Pai do proletariado pode jamais conquistar-te. Escravizar-te, sim, mas nenhum foi capaz de superar a tua mediocridade. A única coisa capaz de conquistar-te será o teu sentido da pureza, a tua aspiração à verdadeira vida – e quanto a isso, não tenho a menor dúvida. Uma vez superada a tua mediocridade e mesquinhez, começarás a pensar – de início, sem dúvida, errática, ridícula e erroneamente, mas pensarás com seriedade. Terás de aprender a suportar a dor que todo o esforço de pensamento comporta em si mesmo, tal como eu e outros suportamos a pena de pensar-te – durante anos, em silêncio, de dentes cerrados. Esta nossa dor far-te-á pensar. E quando começares a fazê-lo sentirás a magnitude do absurdo dos teus quatro milênios de “civilização”. Ser-te-á difícil entender como foi possível que os teus jornais nada mais tivessem a relatar e comentar que paradas sem sentido, condecorações, crimes, enforcamentos, diplomacias, calúnias, mobilizações militares, desmobilizações, de novo mobilizações, pactos, bombardeamentos – e que não tenhas nunca reagido com agressividade ou te tenhas sequer apercebido do perigo que corrias. Talvez te houvesse sido possível entenderes-te a ti próprio se não tivesses engolido bovinamente tudo o que te cala nas mãos. Mas o que deveras será difícil aceitar é a verificação do fato de que tudo foste macaqueando e papagueando através dos séculos; o fato de que o que no teu íntimo acharas certo o era realmente, e que tomaste por patrióticos os teus erros. Terás vergonha da história que fizeste, e nisso reside a única esperança de que os nossos bisnetos não venham a ser obrigados a ler a tua história militar. E não mais será possível a montagem duma grande revolução apenas para pôr em cena um novo “Pedro, o Grande”.



UM OLHAR AGORA PARA O FUTURO. Não saberia dizer-te ao certo como será. Não sei se alcançarás a Lua ou Marte com o orgone cósmico que me foi possível isolar. Nem posso saber de que forma se irão erguer no espaço e aterrar as tuas naves espaciais, ou se utilizarás a luz do Sol para iluminar à noite as tuas casas. Mas sei O QUE NÃO MAIS farás dentro de quinhentos, ou mil, ou cinco mil anos.



“O tipo é visionário! E ainda por cima ditador, a prescrever-me o que não farei!”



Não sou ditador, Zé Ninguém, embora, quisesse eu sê-lo, a tarefa teria sido fácil perante a tua mediocridade. Os teus ditadores só podem dizer-te o que não podes fazer no presente, sob pena de seres enviado para a câmara de gás. Mas não podem dizer-te o que farás no futuro distante, tal como lhes não é possível provocar o crescimento mais rápido de uma árvore.



“E de onde te vem a tua sabedoria, tu, escravo intelectual do proletariado revolucionário?”



Do mais íntimo de ti mesmo, eterno proletário da razão humana.



“Essa é boa! Foi a mim que o tipo veio buscar a sabedoria, às minhas profundezas! Eu não tenho profundezas! E que espécie de conceito individualista de ‘profundezas’, de ‘mais íntimo’, é esse?”



Digo-te que as tens, embora as desconheças. Tens um medo mortal da tua própria profundidade, por isso nem sequer a sentes. Se te abeiras dela, tens vertigens, como se fora um abismo. Temes a queda e a perda da tua “individualidade”, quando só terias a ganhar com o abandono. Embora com as melhores intenções, a tua trajetória é, porém, sempre a mesma: a de uma criatura ávida, cruel, malevolente, mesquinha. Se não te achasse afundado em tua própria fundura não me teria dado ao trabalho desta longa conversa. Conheço a tua capacidade de ir fundo, do tempo em que me procuravas como médico, como alguém a quem entregar o teu sofrimento. O que tens de verdadeiramente profundo é a pedra onde assentará a grandeza do teu futuro. É por isso que posso nomear com segurança o que não mais farás no futuro, porque será então que tu mesmo pasmarás perante o que fizeste durante toda uma era de quatro mil anos de incultura. Quererás agora ouvir-me?



“Vamos a isso, porque é que eu não hei-de dar ouvidos a mais uma utopiazinha? Não há nada, a fazer, meu caro doutor -sou e continuarei a ser um pobre diabo, o homem da rua, que não tem opinião própria. Aliás, quem sou eu para...”



Ouve. Escondes-te detrás da lenda do Zé Ninguém, porque tens medo de mergulhar e de ter de nadar no grande rio da vida, quanto mais não seja em nome dos teus filhos e dos filhos dos teus filhos. A primeira de todas as coisas que não mais farás será consentir na percepção de ti próprio como sujeito insignificante e sem opinião, que afirma a todo o momento “mas quem sou eu...” Tu tens a tua opinião própria e no futuro que prevejo passarás a considerar como vergonha não a conheceres, não a defenderes, não a expressares.



“Mas o que dirá a opinião pública acerca da minha opinião? Os outros fazem-me em tiras se eu me atrever a expressá-la”.



Aquilo a que chamas “opinião pública”, Zé Ninguém, nada mais é que o total de todas as opiniões de todos os homens e mulheres ditos comuns. Todo o homem e mulher tem opiniões erradas e certas. Expressa as erradas porque teme as igualmente erradas dos outros homens e mulheres comuns – e esta é a razão fundamental porque as opiniões corretas raramente são expressas. Tu já não crês, por exemplo, que a tua opinião “não conte”. Um dia saberás e defenderás saber que és o suporte da sociedade humana. Não fujas. Não fiques aterrorizado. Não é assim tão terrível ser a base responsável da sociedade humana.



“Que é então necessário que eu faça para me transformar no suporte da sociedade humana?”



Nada terás que fazer de extraordinário ou de novo basta que continues arando os teus campos, usando o teu machado, examinando os teus doentes, levando os teus filhos à escola ou ao campo de jogos, contando aos teus o teu dia-a-dia, tentando penetrar mais fundo nos segredos da natureza. Tudo isso já és capaz de fazer – embora o tenhas na conta de insignificante perante os feitos do general cheio de condecorações ou príncipe “inchado”, cavaleiro de armadura reluzente.



“Mas o senhor é um visionário, doutor! Não vê que os generais e os príncipes são os detentores dos exércitos e das armas com que se fazem as guerras, do poder de convocar-me para o serviço militar, de destruir as minhas colheitas, o meu laboratório, o meu gabinete de trabalho?”



És convocado para servir o exército e as tuas colheitas e fábricas são destruídas porque berras “Viva!” enquanto lá andas, e tudo o que te pertence é feito em estilhas. Os teus heróis de armadura reluzente não teriam soldados nem armas se claramente assumisses o fato de que mais importam as tuas colheitas e. a produção das tuas fábricas, e que nem campos nem fábricas existem para serem destruídos - coisa que os teus militares e heróis desconhecem, porque nunca trabalharam nos campos, nas fábricas ou.em laboratórios, e crêem que o teu trabalho se processa apenas para servir a honra da pátria alemã ou proletária e não para alimentar e vestir os teus filhos.



“Que é que eu hei-de fazer? Odeio a guerra, a minha mulher chora de desespero cada vez que me chamam, os meus filhos morrem de fome quando os exércitos proletários ocupam as minhas terras e não tem conta o número dos mortos. Tudo o que desejaria era que me deixassem trabalhar em paz nos meus campos, brincar com os meus filhos à volta do trabalho, amar a minha mulher, e, aos domingos, poder tocar, dançar e cantar com alegria. Que hei-de fazer?”



Tão-somente continuar a fazer o que fazes e o que desejas fazer-criar os teus filhos na alegria, amar a tua mulher. SE PUDESSES FAZÊ-LO CLARA E FIRMEMENTE NÃO MAIS HAVERIA GUERRAS – guerras que expõem a tua mulher aos ataques de soldados brutalizados por longos períodos de abstinência sexual, guerras que levam à morte por inanição os teus filhos tornados órfãos, guerras que só te oferecem a ilusória imagem de um celeste “campo de glória”.



“Mas que espécie de homem sou eu se vivendo apenas para o meu'trabalho, para a minha mulher e para os meus filhos os vir ameaçados pelos hunos ou alemães, japoneses ou russos, ou quaisquer outros que me imponham a guerra? Não será meu dever defender o que amo e me pertence?”



Tens razão, Zé Ninguém. Se te atacarem terás de pegar em armas. Mas poderás entender que o “inimigo”, os hunos de todas as nações, nada mais são que milhões de Zés Ninguéns como tu, que berram “Viva!” sempre que os seus príncipes (que desconhecem o trabalho) os chamam às fileiras? Que, tal como tu, também cada um deles se tem em pouca conta e se interroga: “... mas quem sou eu para ter opinião própria?” Quando souberes um dia que és alguém, que a opinião que tens acerca de ti próprio é correta, e que os teus campos e fábricas foram feitos para servir a vida, e não a morte, então poderás responder tu próprio às questões que ora me pões. E para isso não precisarás da seção dos teus diplomatas. Em vez de continuares a berrar “Viva!” e a cobrir de flores o túmulo do soldado desconhecido, ou a consentir que qualquer príncipe à pressa ou general de todos os proletários venha esmagar com o seu peso a tua consciência nacional, deverás opor-lhe a tua auto-estima e a consciência do valor do teu trabalho. (Conheço o teu Soldado Desconhecido, Zé Ninguém. Encontrei-o em combates nas montanhas da Itália – é o mesmo Zé Ninguém que tu, descrente da existência de uma opinião própria, dizendo, “mas quem sou eu etc...”) Poderias tentar conhecer o teu irmão, o Zé Ninguém do Japão, da China, de qualquer país “belicoso”, e tentar dar-lhe a conhecer a opinião justa que tens acerca do teu trabalho como operário, médico, agricultor, pai ou marido, convencendo-o de que afinal tudo o que há a fazer é, simplesmente, tornar qualquer guerra impossível, pela força do amor ao trabalho e aos teus.



“Bom. Mas eles têm as bombas atômicas, e uma só delas pode matar centenas de milhares de pessoas”.



Parece-me que ainda não entendeste bem, Zé Ninguém. Julgas que são os príncipes e generais que fabricam essas bombas? Não, são homens como tu que as constroem berrando “Viva!”, em vez de se recusarem a fazê-lo. Como vês, tudo se encontra ligado ao fato de pensares certa ou erradamente. Se não fosses tão terrivelmente medíocre, grande cientista do século XX, terias achado maneira de servir não à consciência nacional, mas uma consciência internacional que pudesse para sempre impedir a utilização de bombas atômicas; ou, se tal fosse impossível, terias exercido toda a tua influência, por meio de palavras inequívocas, para que nem sequer fossem construídas. Cego com a tua invenção, não vês sequer uma saída possível, porque a buscas no sentido errado e porque pensas mal. E prometeste contudo a todos os Zés Ninguéns do mundo que a tua energia atômica seria a culpa do seu cancro ou do seu reumatismo, sabendo perfeitamente que tal não seria jamais possível, e que apenas tinhas entre mãos as bases de uma arma criminosa. E assim, a tua cegueira é idêntica às dos físicos das épocas anteriores. ESTÁS ARRUMADO PARA SEMPRE. Tu sabes, Zé Ninguém, que eu te dei a conhecer as possibilidades terapêuticas da minha energia cósmica. Mas mantiveste-te silencioso e continuas a morrer de cancro ou do coração berrando “Viva, viviam a cultura e a técnica”. Afirmo-te, pois, Zé Ninguém, que vais cavando o teu próprio túmulo de olhos abertos. Crês que chegou uma nova era, a “era da energia atômica”. Chegou de fato, mas não do modo como a imaginas. Não no teu inferno, mas no meu pequeno e recatado laboratório num recanto distante dos Estados Unidos.



A decisão é tua, Zé Ninguém, quanto a desejares ou não a guerra. Se ao menos pudesses ter consciência de que o teu trabalho serve a vida, e não a morte. Se ao menos pudesses saber que todos os Zés Ninguéns da Terra são exatamente como tu, no que têm de mau e de bom. Mais tarde ou mais cedo -depende de ti não mais hás-de berrar “Viva” a torto e a direito e não voltarás a trabalhar nas tuas fábricas e campos consentido que possam vir a ser alvo de ataques militares. Mais tarde ou mais cedo aprenderás a servir apenas a vida, e nunca a morte.



“Achas que devo fazer uma greve geral?”



Não sei se deves fazer isto ou aquilo. Uma greve geral é um meio arriscado, pois que te expões à justa acusação de que deixas a tua mulher e os teus. filhos a morrer de fome. Não é a greve que irá provar o teu senso de responsabilidade perante os males da tua sociedade. Quando entras em greve não trabalhas. Um dia virá em que, em vez de fazeres greves, saberás TRABALHAR deveras em nome da vida. Chama-lhe então greve de trabalho, se tens apego à palavra “greve”. Mas greve trabalhando para ti, para os teus filhos, para a tua mulher ou a tua rapariga, para a tua sociedade, a tua produção ou as tuas terras. Vai dizer-lhes que não te sobra tempo para as guerras deles, que tens, mais que fazer. Muralha cada cidade desta convicção e deixa então que diplomatas e marechais se matem uns aos outros, pessoalmente. Tais seriam as coisas a ser feitas, se não mais berrasses “Viva” e não mais te afirmasses como sendo ninguém, ou alguém sem direito a opinião própria. Tens tudo nas mãos, a tua vida e a dos teus filhos, o teu machado e o teu estetoscópio. Vejo-te abanar a cabeça, pensar que sou um utopista ou talvez mesmo um “comunista”. Perguntas-me se poderei dizer-te quando saberás viver a tua vida em paz e segurança; a resposta consiste no inverso da tua forma de ser atual: viverás bem e em paz quando a vida significar para ti mais do que a segurança; o amor mais do que o dinheiro; a tua liberdade mais do que as linhas diretivas do partido ou a opinião pública; quando o modo de estar no mundo de um Beethoven ou de um Bach for o tom habitual de toda a tua existência (e já o é, Zé Ninguém, abafado pelo rumor da tua existência menor); quando a tua forma de pensar estiver de acordo, e não, como hoje, em discordância, com a tua forma de sentir; quando te for possível reconhecer os teus dotes a tempo e reconhecer a tempo o teu declínio, a tua velhice; quando te for possível viver o pensamento dos grandes homens em lugar dos crimes dos ditos grandes guerreiros, quando os professores dos teus filhos forem mais bem pagos do que os políticos; quando tiveres maior respeito pelo amor entre um homem e uma mulher do que por um certificado de casamento; quando puderes reconhecer os teus erros refletindo a tempo, e não demasiado tarde, como o fazes hoje; quando sentires que o teu espírito se engrandece conhecendo a verdade e as formalidades te inspirarem horror; quando comunicares diretamente com os teus camaradas de trabalho, não mais tendo diplomatas por intermediários; -quando: a alegria que a tua filha adolescente possa encontrar no amor for também a tua alegria, e não motivo da tua cólera; quando souberes abanar apenas a cabeça nas mesmas circunstâncias em que outrora se castigavam as crianças por tocarem nos seus órgãos sexuais; quando finalmente a face humana do homem da rua puder expressar a alegria, a liberdade e a comunicação, não mais a tristeza e a miséria; quando os seres humanos não mais povoarem a terra com as suas ancas retraídas e rígidas e os seus órgãos sexuais enregelados. Pedes orientação e conselho, Zé Ninguém. Quantas vozes, boas e más, se ergueram, pelos séculos, em resposta... Não é porque delas careças que permaneces na desgraça; é a tua própria mesquinhez que te condena. Também eu poderia aconselhar-te, mas sendo como és e pensam o como pensas não serias capaz de pôr em seção o que quer que te fosse aconselhado no interesse de todos.



Imaginemos que eu te aconselhava a fazeres desaparecer toda a atividade diplomática e a substituí-la, pela fraternidade profissional e pessoal com todos os sapateiros, carpinteiros, mecânicos, técnicos, físicos, educadores, escritores, administradores, mineiros e camponeses de todos os países; que fossem, pois, todos os sapateiros do mundo os responsáveis pela decisão de qual o melhor modo de calçar todas as crianças chinesas; os mineiros responsáveis pelas reservas de carvão para aquecimento de todos os países frios; os educadores de todo o mundo volvidos guardiões da futura sanidade mental de todas as crianças recém-nascidas. Que farias tu, Zé Ninguém, sé te visses a braços com todos estes simples problemas da existência quotidiana?



Decerto que a tua resposta, ou a de qualquer dos representantes do teu partido, governo ou sindicato, (a menos que me prendesses imediatamente como “comunista”), seria a seguinte:



“Quem sou eu para poder substituir as relações diplomáticas por relações internacionais ao nível do trabalho e do desenvolvimento social?”



Ou: “A eliminação das diferenças nacionais no domínio do desenvolvimento econômico e da cultura não é possível”.



Ou: “Queres que se restabeleçam relações de qualquer espécie com os fascistas alemães, ou japoneses, ou com os comunistas russos, ou com os capitalistas americanos?”



Ou: “Acima de tudo interessam-me os destinos da minha Pátria – Rússia, Alemanha, América, Inglaterra, Israel ou Comunidade Árabe”.



Ou: “Já me chegam os problemas que tenho para manter a minha vida em ordem e para me entender com o meu Sindicato dos Alfaiates. Outros que se ralem com os sindicatos de outros países”.



Ou: “Não dêem ouvidos a este capitalista, bolchevista, fascista, trotskista, internacionalista, sexualista, judeu, estrangeiro, intelectual, mitómano, utopista, demagogo, doido, individualista, anarquista. Onde está a vossa consciência de americano, russo, alemão, inglês, judeu?”



Podes ter a certeza absoluta de que usarias qualquer destes slogans, ou outros, a fim de evitar a tua responsabilidade na forma como se processam as relações entre os homens.



“Mas, então, eu não sou nada? Parece que não me reconheces um único traço positivo! Afinal, que diabo, trabalho que me farto, sustento a minha mulher e os meus filhos, levo uma vida decente e sirvo o meu país. Não posso ser tão estupor quanto isso!”



Sei que és uma criatura capaz, sólida, com qualidades de trabalho, tal como uma abelha ou uma formiga. Tudo o que tentei foi pôr-te à mostra o que tens de medíocre e te destrói a vida há já milhares de anos. És GRANDE, Zé Ninguém, quando não és medíocre e mesquinho. A tua grandeza é a única esperança que nos resta a todos. És grande quando desempenhas com gosto a tua tarefa quando trabalhas na alegria a madeira, quando constróis, quando pintas e embelezas os teus espaços, quando trabalhas a terra, quando contemplas o céu na quietude e te comprazes na existência dos animais simples, no orvalho, quando danças e cantas, quando amas a beleza dos teus filhos, o corpo do homem ou da mulher que escolheste; quando vais até um planetário tentar entender o espaço ou a uma biblioteca ler o que pensaram da vida outros homens e mulheres. És grande na tua velhice, com o teu neto no colo, dizendo-lhe de como foi outrora, respondendo à sua curiosidade confiante. És grande quando és mãe, embalando o teu filho nos braços, o coração cheio de esperança de que para ele venham melhores dias, a felicidade que, hora a hora, lhe vais construindo.



És grande, Zé Ninguém, quando cantas as antigas canções do teu povo ou danças ao som do acordeão, porque os cantos do povo são pacíficos, e são-no em todos os lugares do mundo. E és grande quando afirmas ao teu amigo:



“Ainda bem que o destino me concedeu até hoje uma vida limpa e sem ambições, que pude acompanhar o crescimento dos meus filhos, ouvir-lhes as primeiras palavras, vê-los mover-se, andar, brincar, fazer perguntas, assistir à sua, alegria; ainda bem que não deixei passar a Primavera sem a sentir, que pude gozar o vento ameno e o rumorejar dos regatos e o canto das aves; que não perdi o meu tempo em mexericos com os vizinhos, que amei a minha companheira e que senti correr no meu corpo o fluxo da vida; ainda bem que, mesmo em tempo de perturbação, não perdi o norte nem o sentido da vida. Pois que me foi possível escutar a voz que murmurava no meu intimo: ‘Existe apenas uma única coisa que vale a pena: viver bem e alegremente a própria vida. Escuta a voz do teu coração, ainda que tenhas de afastar-te do caminho trilhado pelos timoratos. E não consintas que o sofrimento te torne duro e amargo.’ E assim, na quietude do cair da tarde, quando me sento na erva em frente de minha casa, depois de um dia de trabalho, com a minha mulher é os meus filhos, ouço no pulsar da natureza à minha volta a melodia do futuro: ‘Humanidade inteira, eu te abençôo e abraço.’ E desejaria então que a vida aprendesse a defender os seus direitos, que fosse possível modificar os espíritos duros e os medrosos, que só fazem troar os canhões porque a vida os desapontou. E quando o meu - filho instalado no meu colo me pergunta: ‘Pai, o sol desapareceu, para onde foi, achas que volta depressa?’, respondo-lhe: ‘Sim, filho, há-de voltar amanhã para nos aquecer.’”







***







Cheguei ao fim da minha conversa contigo, Zé Ninguém. Muitas coisas mais haveria, no entanto, a dizer-te. Mas se me leste com atenção e honestamente descobrir-te-ás agindo como Zé Ninguém mesmo em situações que te não referi, pois que todas as tuas ações e pensamentos têm sempre o mesmo tom.



O que quer que me tenhas feito ou venhas a fazer no futuro, quer me glorifiques como gênio ou me encerres numa instituição psiquiátrica, quer me adores como teu salvador ou me enforques como espião, mais tarde ou mais cedo a necessidade forçar-te-á a entender que descobri as leis da vida e que te depositei nas mãos o instrumento capaz de orientar a tua existência para uma finalidade consciente, como até aqui pudeste fazer com as tuas máquinas. Fui um bom engenheiro do teu organismo. Os teus netos seguirão as minhas pegadas e serão bons engenheiros da natureza humana. Fui eu que te revelei o campo infinitamente vasto da tua própria energia vital, a tua natureza cósmica. Essa é a minha recompensa.



Os ditadores e os tiranos, os aduladores e difamadores e os chacais sofrerão a sorte que outrora lhes foi anunciada por um velho sábio:







Plantei a semente de palavras sagradas neste mundo.



Quando muito depois de morta a palmeira aluir o rochedo;



Quando a magnificência de todos os reis não for mais que podridão das folhas secas;



Através dos dilúvios mil arcas guardarão a minha palavra:



Ela prevalecerá.

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Queridos em primeiro lugar eu me considero um intelectual outsider , coisa aqui rara no Brasil , não pertenço a nenhum partido, não pertenço a nenhum grupo inclusive a nenhum grupo de intelectuais não respondo a nenhum credo , não participo de qualquer militância . ( Milton Santos . )

Meus escritos são para aqueles que desejam receber a verdade, num estado de mente simples e infantil, pois eles possuirão o reino de Deus. Escrevi unicamente para aqueles que buscam; para os astutos e expertos, nada tenho a dizer...
Agrada ao Supremo revelar seus segredos através do tolo, olhado pelo mundo como sendo um nada; percebe-se que seu conhecimento não procede destes tolos, mas Dele. Portanto, peço que considerem meus escritos como sendo os de uma criança a quem o Supremo manifestou Seu poder. Há tanto dentro deles, que nenhum tipo ou quantidade de argumentação ou raciocínio pode compreender ou alcançar; mas para os iluminados pelo Espírito, sua compreensão é fácil, e não passa de uma brincadeira de criança. – Boehme

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